A arvorezinha e a estaca: uma crônica reflexiva de final de ano
- Hudson de Pádua Lima
- 27 de dez. de 2021
- 5 min de leitura
Era final de tarde de uma segunda-feira não tão segunda-feira assim, naquele limiar atemporal entre Natal e Ano Novo. Saí para caminhar, sem os habituais fones de ouvido e podcast a me entreterem, e me propus a estar consciente e em minha própria companhia durante o tempo que levasse o percurso. O trajeto já era há muito conhecido – uma ciclovia à margem de um córrego – eu lembrava do prazer que me proporcionava caminhar por ali quando, antes, ficava muito mais longe de onde eu morava e, agora que eu havia me mudado para perto, parecia trivial.

Logo no início da caminhada algo me chamou a atenção. Uma arvorezinha nova, mas que já era mais alta do que eu, amarrada a uma estaca de pouco mais de um metro por um arame e que pendia inclinada, solta do chão. Algum dia, havia sido o apoio firme e fundamental que possibilitou à mudinha crescer e se tornar a árvore que agora, em irônica inversão, mantinha a estaca ainda de pé, ainda que frouxa e descaída. Muitas ideias e pensamentos me ocorreram de imediato, relacionados à passagem do tempo, crescimento, envelhecimento, desenvolvimento, perspectiva e relatividade. Tirei uma foto, para registrar o momento e o símbolo, mas não consegui seguir caminhada sem continuar germinando essas questões.
A primeira imagem que me ocorreu foi a de uma criança sustentada por seu cuidador, amparada em seu crescimento até atingir o desenvolvimento físico e psicológico suficientes para continuar sozinha. Aquela arvorezinha não havia continuado sozinha. O vínculo ainda se mantinha e era forte – de aço – e a mantinha atada à estaca. Hoje, era a árvore que impedia a estaca de apodrecer junto à umidade do solo, que já a teria consumido se ela não tivesse permanecido de pé, ainda que já não mais com a mesma sustentação e retidão. Era como a grata retribuição que o filho adulto poderia oferecer aos pais quando estes se tornam vulneráveis em seu envelhecimento. Essa imagem me pareceu poética, singela e bonita, como a foto que eu havia tirado.
Mas continuei andando e pensando e outra metáfora me veio. Uma criança aprendendo a andar de bicicleta com a ajuda de rodinhas laterais. Estas são muito úteis durante as primeiras tentativas de se equilibrar e pedalar, mas completamente dispensáveis depois que se adquire alguma prática. Prejudiciais, talvez, se continuarem fixas à roda, impedindo a criança de progredir em seu aprendizado. Poderia ser o caso da arvorezinha. O vínculo, que devia ser transitório, havia se prolongado além do tempo necessário por ser rígido demais e agora mantinha-a presa à inútil estaca. Aparentemente sem causar-lhe grandes danos, mas que provavelmente interferiu na curvatura do tronco enquanto crescia, curvatura esta que se prolonga pelo resto do tronco, cada vez mais irreversível conforme o tempo passa.
Me fez pensar em quantas estacas simbólicas eu e todas as outras pessoas ainda mantemos juntas de nós sem necessidade, por inconsciência, comodidade ou medo. E o quanto elas podem ter me moldado e distorcido ao longo dos anos. Concepções de mundo, regras sociais, normas comportamentais, lembranças, mágoas, rancores… complexos, em linguagem junguiana. Será tarde demais para me livrar delas, agora que eu sabia? Seriam elas parte permanente de minha estrutura, indissociáveis de todo o resto que eu conhecia como sendo propriamente Eu? O quanto elas me desviaram do crescimento “natural” que eu poderia ter atingido sozinho, ainda que sem apoio? Eu teria chegado até aqui sem elas?
Prossegui em meu passo, paradoxalmente fascinado por estas duas perspectivas interpretativas, as quais eu nem havia ainda digerido e já me surgiu uma terceira. Quanto comprometimento precisava haver entre duas pessoas para que seja possível uma relação (de qualquer natureza) duradoura e estável entre elas? Um vínculo de aço, como o arame que atava a árvore à estaca? Funcional, embora limitador. Evidenciava a diferença entre os dois componentes da relação e como um podia ser útil ao outro em diferentes situações, inclusive denotando a reciprocidade nessa troca. Acontece, entretanto, que agora a ligação era uma necessidade para a estaca, que não sobreviveria sem a árvore, enquanto esta, apesar de ter se beneficiado muito da ajuda da primeira, poderia ter tido uma chance por si mesma. Haveria rancor na arvorezinha? Seria humilhante para a estaca, permanecer parcamente de pé naquelas condições? Seriam amigas ou codependentes?
Percebi que, de fato, havia me deparado com um símbolo. Essa árvore e essa estaca pareciam inesgotáveis em possíveis significados e interpretações. Ao sol quente que me incomodava com seu calor e contra o qual eu praguejava no início da caminhada, agora eu estava grato, por me proporcionar a iluminação da foto que tirei e, em última instância, a minha própria visão da cena.
Continuei caminhando, pensando se ao fim da ciclovia, eu atravessaria a avenida e voltaria para casa pelo seu sentido contrário, para apreciar a visão do outro lado e fazer um trajeto diferente ou se voltava pelo mesmo. O outro lado estava mais exposto ao sol e era menos atrativo em paisagem, mas seria “novo”. Voltar pelo mesmo caminho poderia me privar de novas experiências e reflexões. Mas seria de fato o mesmo caminho? Toda a minha perspectiva seria diferente, esquerda seria direita e vice-versa, o sentido dos carros se invertia, bem como a incidência da luz e eu iria contra o sentido do rio agora. Isso me lembrou de Heráclito "nenhum homem pisa duas vezes no mesmo rio". O rio do início da minha caminhada já não era mais o mesmo, segundo o pensamento do filósofo, e, por extensão, nem eu. Decidi voltar pelo mesmo lado da avenida então.

O sol já estava mais baixo, a luz laranja crepuscular dava outra iluminação para a paisagem e logo vi que havia sido uma boa decisão: eu teria uma ótima visão durante meu retorno e não, não era o mesmo caminho, eu não estava perdendo nada novo lá do outro lado que não pudesse também aproveitar aqui, era apenas questão de escolha (ainda que com uma renúncia sempre atrelada).
Reparei em várias formigas-de-fogo (ou lavapés, como são mais conhecidas) cruzando meu caminho, carregando folhinhas com pelo menos o dobro ou triplo de seu tamanho. Não tinha visto-as na ida, em quantas delas eu teria pisado em minha desatenção? Parei para tirar outra foto e logo vi que, em sua pressa, eu não conseguiria uma imagem nítida. Algumas desviaram de mim, outras continuaram em seu caminho, vindo em minha direção e provavelmente passariam por mim, me picando se precisassem ou morrendo, se eu as esmagasse. Desisti da foto e prossegui, refletindo sobre quantos caminhos se cruzam e seus transeuntes nem se dão conta do encontro. A sua inconsciência quer dizer que o encontro não ocorreu? Ou que foi inócuo? Eu com certeza havia pisado em algumas formigas e nunca teria consciência de quantas. Será que, em escala cósmica, eu poderia ser a formiguinha passível de ser esmagada por forças maiores que eu, das quais eu nem desconfiava da existência? Em escala mais humana e pragmática, eu podia ver que muitas pessoas haviam passado por ali, algumas delas deixando para trás as piores pegadas que uma pessoa pode deixar: lixo. Recolhi uma embalagem de cigarro do chão, já avistando uma lixeira próxima. Fiquei satisfeito ao pensar que a pegada que eu deixaria, embora invisível, reverteria um pouco do mal ou displicência de outro ser humano. Mas então comecei a reparar em várias outras embalagens e itens descartados à margem da ciclovia e do rio e percebi que, afinal, eu também estava fazendo um “trabalho de formiguinha”… Torci então para que eu sempre tivesse uma determinação "de fogo", como a das lavapés.
Hudson de Pádua Lima
Psicólogo
CRP 06/165910
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