A importância dos sonhos na análise e no desenvolvimento psíquico
- Hudson de Pádua Lima
- 10 de jul. de 2021
- 6 min de leitura
A psicoterapia (ou análise) junguiana é conhecida, entre outras coisas, pela ênfase dedicada ao estudo e interpretação dos sonhos do paciente (ou analisando), compreendidos por Jung como a via régia para o inconsciente. Uma vez que, segundo a psicologia analítica, a personalidade se desenvolve a partir do inconsciente pessoal e coletivo, é de grande interesse empreender um trabalho ativo e deliberado com essas instâncias psíquicas.
Jung estima ter analisado mais de 67 mil sonhos ao longo de sua carreira clínica, tendo tido a oportunidade de observar, testar hipóteses e descartá-las ou modificá-las conforme percebia os resultados psicoterapêuticos obtidos a partir das interpretações. Segundo ele, “Um sonho que não é compreendido permanece uma mera ocorrência; quando compreendido, ele se torna uma experiência viva”. Jung não se preocupava em explicar as origens ou causas dos sonhos, mas partindo do fato de que eles naturalmente ocorrem e são desde sempre motivo de assombro, curiosidade, preocupação ou interesse da humanidade, buscou um meio de compreendê-los à luz da psicologia profunda e descobrir como eles poderiam ajudar seus pacientes.
Em 1900, Freud já havia lançado o seu livro “A Interpretação dos Sonhos” e foi a partir desta leitura que Jung decidiu entrar em contato com o famoso fundador da psicanálise, encontrando-se pessoalmente com ele pela primeira vez em 1907. Até 1912, Jung foi um fiel defensor das ideias freudianas e havia sido apontado por Freud como seu sucessor. Porém, profundas divergências teóricas vinham abrindo espaço para o que culminou, no ano seguinte, no fim definitivo da parceria e amizade entre eles. Jung discordava da ênfase excessiva que Freud dava à sexualidade humana, acreditando que a espiritualidade e a busca pela autorrealização tinham igual ou maior influência na vida psíquica. Além disso, também divergiam em suas concepções acerca da natureza do inconsciente e, consequentemente, do papel desempenhado pelos sonhos.

Freud concebia o inconsciente como um depósito para todos os conteúdos negados pela atitude consciente, seja por terem sido esquecidos, moralmente rejeitados ou terem ficado abaixo do limiar da atenção. Para Jung, além disso, o inconsciente consistiria também na matriz original da qual brota a consciência, retendo em si todas as potencialidades futuras de desenvolvimento pessoal e coletivo. Assim, enquanto que para Freud os sonhos seriam apenas resquícios da vida consciente ou manifestações distorcidas de desejos reprimidos, para Jung eles constituíam a linguagem natural do inconsciente, expressões espontâneas de sua riqueza criativa.
Na prática, a primeira diferença que isso implica é que a interpretação freudiana dos sonhos tende a considerar as imagens oníricas como signos de significado fixo, quase sempre de natureza sexual e que apareceriam de forma disfarçada para o sonhador (por exemplo, chave em uma fechadura aludindo a uma relação sexual). Numa visão junguiana, entretanto, cada imagem é tratada como um símbolo portador de significados potencialmente inesgotáveis e que se mostram diretamente ao sonhador como sendo a melhor expressão visual possível de uma ideia ou conceito. Dessa maneira, a mesma chave e fechadura poderiam remeter não apenas à sexo, como também a segredos, abertura, obstrução, prisão ou liberdade.
A segunda diferença prática é que Freud tendia a interpretações redutivas e objetivas, enquanto Jung também concebia interpretações construtivas e subjetivas. O que isso significa? Para o primeiro, os sonhos poderiam ser revertidos a eventos conscientes que os causaram (abordagem redutiva), sendo que seus personagens representariam de fato as pessoas com as quais o sonhador sonhava (caracterização objetiva das imagens do sonho). Para o segundo, os sonhos poderiam também expressar ensaios para o desenvolvimento psíquico futuro do paciente (abordagem construtiva), e as figuras oníricas poderiam atuar como símbolos para aspectos da personalidade do sonhador (caracterização subjetiva das imagens oníricas).
A terceira diferença entre os dois teóricos diz respeito à função compensatória desempenhada pelos sonhos. À exceção dos sonhos traumáticos (que apenas repetiam vivências conscientes de sofrimento até que a psique pudesse assimilar seu impacto emocional), a maioria dos sonhos se prestariam a oferecer um equilíbrio para a situação consciente do sonhador, opondo-se, modificando ou confirmando-a. Embora Jung concordasse com Freud que essa era de fato a principal função dos sonhos, também concebia a possibilidade de sonhos não compensatórios, que poderiam ser então prospectivos (indicativos de desenvolvimento psíquico futuro) ou extrassensoriais (proféticos ou telepáticos), ideia abertamente rejeitada pelo segundo.
Em síntese, a abordagem junguiana dos sonhos assume que nada pode ser presumido com relação ao significado do sonho ou de imagens específicas; o sonho não é um disfarce e sim um conjunto de fatos psíquicos e pode oferecer informações de fontes inacessíveis para o atual nível de conhecimento do Ego (e não necessariamente tendo uma origem sobrenatural).
Na prática clínica, incentivamos os nossos pacientes a manterem um diário de sonhos, no qual registram todos os detalhes que conseguem se lembrar das vivências oníricas da noite. Isso inclui o(s) cenário(s) em que ocorre, os personagens (humanos, animais ou míticos) que atuam na trama, a situação inicial da qual o enredo se desenvolve e chega à um clímax, e, por fim, o seu desfecho (ou a falta dele, já que muitos sonhos ficam em aberto). Além disso, também é relevante verificar os antecedentes diurnos do sonho, que são as vivências experienciadas pelo sonhador em estado desperto na véspera ou nos dias antecedentes ao sonho.
Com esses dados disponíveis, terapeuta e paciente começam a trabalhar colaborativamente sobre o sonho. O analista parte sempre da premissa de que cada sonho é único e detém sua própria psicologia simbólica, devendo, portanto, proceder com cuidado ao interpretá-lo. Junto ao sonhador, começa então a amplificar cada símbolo e imagem, buscando associações para eles de modo a explorar o sonho sob diversos ângulos possíveis. Por exemplo, em um sonho aparece um leão. O paciente conta sobre sua visita à um zoológico, a primeira vez que viu pessoalmente tal animal. Além disso, comenta que o filme do Rei Leão marcou muito a sua infância, tendo assistido com o irmão diversas vezes. E, por coincidência, esse irmão tem como signo astrológico justamente Leão. Todas essas informações são levadas em consideração para uma ou mais interpretações possíveis para a aparição do felino no sonho. Isso, porque dois fenômenos muito comuns nos sonhos são a condensação e o deslocamento. Condensação ocorre quando uma imagem retém múltiplos significados em uma única representação, como já foi exemplificado. O deslocamento, por sua vez, acontece quando um significante manifesta-se em outra figura, que não aquela à qual literalmente corresponde. Assim, por exemplo, o leão pode aparecer no sonho representando o irmão leonino, ao invés de revelar-se abertamente enquanto tal. Outra possibilidade ainda é o desdobramento, quando um mesmo significante tem várias representações no mesmo sonho. Em nosso exemplo, o tema do irmão pode aparecer ao mesmo tempo na figura do felino, na imagem humana dessa pessoa e, digamos, em dois filhotes do animal, que se revelam em outra parte do sonho.
Todas essas possibilidades são exploradas pela dupla analítica, tendo como norteador o sentido afetivo que uma dada interpretação traz ao sonhador. Os sentimentos que teve durante o sonho e, depois, ao acordar são levados em consideração e, quando uma interpretação proporciona uma sensação de satisfação ou de sentido, o trabalho é considerado bem sucedido. Muitas vezes, porém, esse tipo de conclusão pode não ser alcançada, seja porque o sonho não oferece informações suficientes e a amplificação não levou a nenhum desenvolvimento significativo, seja porque o sonho faz parte de uma série, que ainda está por se revelar no processo analítico. Além disso, um sonho pode trazer temáticas arquetípicas que vão além do escopo da experiência pessoal do sonhador, aludindo à questões da humanidade como um todo, como a morte, a criação ou o fim do mundo, a união sublime com uma divindade ou o casamento alquímico de um par de opostos complementares. Nesse caso, o analista pode contribuir na amplificação dos símbolos partindo de seus conhecimentos mitológicos, folclóricos e culturais. Mais frequentemente, entretanto, os sonhos fazem parte do universo pessoal do paciente e seus personagens referem-se à partes de sua personalidade, como a Sombra, a Anima ou o Animus, personas e complexos.
Outra possibilidade clínica no trabalho com sonhos é a imaginação ativa. O analisando retorna ao sonho em sua imaginação, sozinho ou conduzido pelo terapeuta, e interage com ele. Pode conversar com as figuras dos sonho, pode explorar o cenário para além do que este se revelou à memória, pode continuar narrativas interrompidas ou sem desfecho, pode modificar uma situação ou repetir uma experiência. As possibilidades são ilimitadas. As ações simbólicas assim empreendidas contêm um inestimável potencial terapêutico de cura e desenvolvimento pessoal. Conflitos inviáveis de serem resolvidos na vida desperta podem encontrar solução por essa via. Experiências para as quais ainda não se está preparado para vivenciar podem ser ensaiadas em sonhos ou na imaginação ativa. Questões existenciais como o sentido da vida e o destino após a morte podem ser exploradas dessa maneira através de símbolos. Tudo isso constitui o que Jung chamou de função transcendente: interação deliberada entre consciente e inconsciente para fins de conciliação de opostos e síntese criativa, que é exatamente o que propulsiona a personalidade a novas criações, aquisições e integração entre suas partes - objetivo último da análise, a individuação.
Muito mais poderia ser dito a respeito de sonhos, afinal, não é à toa tamanha atenção a eles dispendida na teoria junguiana. Abordagem semelhante à exposta acima pode ser aplicada na clínica para exploração de outras expressões criativas do paciente, como produções artísticas de naturezas diversas (pintura, escultura, colagens, poesias, histórias, etc.), as quais também são consideradas vias de acesso ao inconsciente e embasam a arteterapia.
Bibliografia consultada: Mattoon, M. A. (2014). Como entender os sonhos. Brasil: Paulus Editora.
Ribeiro, J. P. (2013). Psicoterapia: Teorias e técnicas psicoterápicas. Brasil: Summus Editorial.
Hudson de Pádua Lima Psicólogo
CRP 06/165910
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