As várias pessoas dentro de uma relação
- Hudson de Pádua Lima
- 13 de jan. de 2023
- 5 min de leitura

Provavelmente você não sabia, mas não são apenas você e seu(ua) parceiro(a) que compõem a sua relação. E não, não estou falando nem de traição e nem de relacionamentos não-monogâmicos, me refiro a uma relação entre dois indivíduos mesmo e às várias pessoas psíquicas que também participam de uma relação afetiva. A ideia que desenvolverei nesse texto é válida para outras configurações de relacionamentos, inclusive amizades, mas para manter a simplicidade, usarei apenas o exemplo de casais.
Quando digo que vocês não são os únicos nessa relação, quero dizer vocês enquanto egos; você que me lê agora, graças à atenção focada propiciada por seu ego no estado de consciência desperto. Porém, desde o princípio, quando duas pessoas se apaixonam, já existem outras pessoas psíquicas envolvidas. Isso porque paixão é uma projeção - a euforia dos amantes se dá justamente por haver uma parte deles próprios (desconhecida e inconsciente) projetada no outro, a qual provoca atração por querer retornar à fonte.
A projeção é mais evidente em paixões, mas qualquer relação humana tem componentes projetivos, mais ou menos intensos e mais ou menos explícitos. Relações hierárquicas mostram bem isso: existe admiração, temor e/ou respeito pelo Professor, Policial, Médico, Patrão, etc. antes que se desenvolva esses mesmos sentimentos de forma consciente pela pessoa por trás do papel social (a persona). À medida em que se estabelece uma relação com a pessoa real, essas projeções são parcialmente recolhidas (raramente de forma total), de forma que O Policial, O Médico, O Professor, etc. são reconhecidos como figuras internas que também fazem parte do indivíduo e desempenham, psicologicamente, funções correlatas em sua psique (policiamento, cura e instrução, por exemplo).
Mas, voltando às relações amorosas, o componente projetivo costuma ser a contraparte sexual do gênero com o qual a pessoa se identifica, isto é, o homem apaixonado projeta sua feminilidade inconsciente (sua Anima) na mulher e esta projeta sua masculinidade (Animus) no homem. Em relações homoafetivas, as partes projetadas podem ser a sombra (a parte não reconhecida de si próprio) e/ou Self (um ideal de Eu). Isso porque a sombra costuma ser uma pessoa psíquica do mesmo gênero com o qual o Ego se identifica, enquanto o Self pode se apresentar em quaisquer gêneros ou mesmo nenhum. Em relações com outras dinâmicas de gênero envolvidas, há outras nuances e complexidades que não cabem nessa exposição, mas que não são ignoradas na clínica ou na teoria. Os estereótipos de gênero vêm sendo desconstruídos e relativizados e apenas continua-se falando em termos de masculino e feminino, Animus e Anima, por convenção. Poderíamos muito bem substituir esses termos por outros menos carregados semanticamente, como Logos (racionalidade) e Eros (afetividade), ou Ying e Yang.
A projeção é um fenômeno que acontece espontânea e autonomamente, não podendo ser provocada (e nem facilmente revertida) pela vontade. É por isso que não escolhemos (pelo menos não a princípio) os sentimentos que temos por uma pessoa. Se ela tinha algum gancho. alguma característica compatível com o teor do conteúdo projetado,o fenômeno acontece. Porém, mesmo que esse traço já existisse, a projeção exagera e potencializa essa característica, pois o conteúdo projetivo tem sempre uma raiz arquetípica, ou seja, transpessoal. É muito fácil observar isso nas declarações de amor: “você é meu herói”, “você é minha princesa”, “meu porto seguro”, “minha musa”, etc. A experiência de enamorar-se é coletivamente compartilhada e, por isso, herdada culturalmente, trazendo consigo toda essa potência.
Assim, desde o início de um relacionamento, além dos dois egos, já há pelo menos outro par de figuras internas participando dessa interação. Isso explica muito da ambiguidade que pode e costuma haver entre um casal. Ora se age apaixonado, movido pela imagem idealizada do outro, ora se age mais friamente, quando o outro é visto de forma mais objetiva. E, noutras situações, o outro também pode ser o portador de projeções sombrias, tornando-se um(a) grande vilã(o) (“ela é um megera”, “ele é um tirano", etc.). Na esfera psíquica, esses personagens não são apenas metáforas, eles são realidades simbólicas! Eles existem autonomamente enquanto personalidades parciais vivendo “dentro da sua cabeça”, são, por exemplo, as vozinhas que povoam nosso pensamento com críticas, opiniões, sugestões, etc. e que muitas vezes reconhecemos, com estranhamento, não serem exatamente nossas. São também as pessoas que aparecem em nossos sonhos, os assim denominados complexos (ou, como Jung carinhosamente apelidou, “a pequena gente”). É aí que começam os atritos e problemas num relacionamento, pois pode acontecer de uma ou mais dessas pessoas psíquicas:
antagonizarem o parceiro (ou alguma de suas respectivas figuras internas);
estarem alheias ao relacionamento (elas não se comprometeram, quem está namorando, do ponto de vista delas, é apenas o ego);
estabelecerem relações paralelas de natureza diversa com o ego ou as pessoas psíquicas do outro (apenas amizade, dependência, dominação, temor, devoção, etc.).
Na prática, vai acontecendo, além das brigas e incompreensão mútua, uma compartimentação da vida romântica em relação a todo o resto: o parceiro não pode ser apresentado no trabalho, ou não pode conviver com a família do outro e nem com seus amigos (que são ou vão sendo afastados) - o casal passa a funcionar só na vida íntima, a dois. E isso não é bem funcional, na verdade, é?
O cerne do problema reside na ilegítima elevação do ego ao posto de monarca absoluto da personalidade, o qual institui um, por assim dizer, monoteísmo psicológico. As outras partes da personalidade não são reconhecidas, ou, se são, não têm espaço de expressão: “isso é coisa de criança”, “isso não é coisa de homem”, “mulher não age assim”, “você tá maluco?”... Esse é o paradigma coletivo ocidental, compartilhado e inclusive perpetrado por boa parte da Psicologia. Freud “permitiu” a existência de outras duas entidades psíquicas além do Ego: o Id e o Superego. Jung abriu a porta para todas as outras e, mais recentemente, James Hillman e Andrew Samuels (entre outros), as restituíram ao seu lugar democrático e politeísta junto ao ego, não abaixo ou subordinado a ele.
Esse novo paradigma pode parecer complicar, ao invés de resolver o problema. Reconhecer que “o eu não é senhor em sua própria casa” (Freud) é, a primeiro momento, possivelmente alarmante. Por outro lado, talvez redistribua o peso e a responsabilidade que acreditávamos ser exclusivamente nossa por nossas vidas, escolhas e atos. Mas é redistribuir e não nos eximir dessa responsabilidade. O ego ainda é o gerente da casa, que deve reconhecer e tratar com respeito seus hóspedes, direcionando-os para os espaços que podem ocupar, segundo seus critérios. Expulsá-los não é uma opção e eles se revoltarão se houver a tentativa.
Num relacionamento, isso pode significar fazer acordos, concessões, delimitar espaços e engajar-se ativamente nas questões trazidas pelas figuras internas um do outro. A criança interior, por exemplo, não participa da vida sexual do casal, mas pode e deve estar presente em momentos de lazer e descontração. A persona profissional deve ficar no trabalho, ao invés de continuar delegando tarefas, analisando ou subordinando o parceiro em casa. A sombra deve ser reconhecida e acolhida, liberando o parceiro de ser seu bode expiatório, para que este também possa lidar com suas próprias questões, assumindo a responsabilidade por elas. E assim por diante, cada pessoa em seu devido lugar - algumas participando mais ativamente da relação e outras um pouco mais distantes, exercendo outras funções.
E isso, não só pelo bem do relacionamento, mas como investimento em sua própria individuação. A partir do momento que se assume uma vida a dois, a individuação deixa de ser um projeto pessoal e passa a ser uma empreitada compartilhada. O recolhimento de projeções e o reconhecimento das múltiplas facetas de Si Mesmo representa um aprofundamento em si e no estabelecimento de relações mais verdadeiras e completas, as quais incluem os conflitos, ao invés de ignorá-los ou menosprezá-los (e junto deles, ignorar e menosprezar partes de si mesmo).
Hudson de Pádua Lima
Psicólogo 06/165910
São Carlos