Crônica: A minhoca no deserto de concreto
- Hudson de Pádua Lima
- 24 de abr. de 2023
- 5 min de leitura

Mais uma vez é uma simples caminhada no final de tarde que vem me trazer algumas reflexões profundas sobre a vida (ou pensamentos muito doidos, a depender da perspectiva). Quando escrevo, geralmente estou atravessado por um complexo ou em contato com algum símbolo. Não escolho quando ou como nenhuma dessas duas coisas acontecem. O complexo (uma unidade autônoma da psique, uma personalidade parcial, com pensamentos, desejos, sentimentos, memórias e visões de mundo próprias) tem sua própria agência e é constelado por algum estímulo do ambiente, posso tentar suprimi-lo ou direcioná-lo, mas dificilmente negá-lo ou controlá-lo. Enquanto o símbolo vem semi-pronto do inconsciente e não é possível evocá-lo, você apenas se coloca receptivo e de prontidão para reconhecê-lo, se ele se apresentar. Você sabe que é um símbolo porque ele tem uma carga energética própria, você poderia ter entrado em contato com ele em outro contexto e nada teria acontecido, mas se ele é quem se coloca, você o percebe diferente. E foi isso que aconteceu comigo hoje com a minhoca.
Eu estava andando em uma pista de caminhada marginal a um córrego, em uma avenida movimentada, arborizada e sombreada. O sol não estava tão baixo, de modo que os contrastes de luz e sombra ainda estavam bem vivos e saltavam aos olhos. E eis que vejo uma minhoca rastejando (ou se contorcendo?) no concreto, em direção à terra logo ao lado. Não sei quão comum ou atípico isso é, mas me chamou bastante a atenção.
Ponderei se deveria ajudá-la a voltar para a terra, pensando que sua chance de fazê-lo sozinha era baixa e muito mais provável seria que fosse pisoteada antes que conseguisse ou, com mais sorte (para o predador), virasse petisco para algum animal. Se eu a arrastasse com meu tênis, machucaria? Ela parecia tão frágil... Confesso que não cogitei pegá-la com a mão (nada pessoal Dona Minhoca, mas prefiro não). Esse dilema mal me tomou dez segundos e acabei não fazendo nada, nem tirei uma foto, que poderia ilustrar essa crônica, pois até então não sabia que escreveria sobre isso. Achei que fosse só isso, algo incomum no meu caminho corriqueiro.
Mas essa é a marca do inconsciente: você não o prevê, não escolhe como ele se manifesta e, uma vez tocado por ele, você não pode negar que foi. Fiquei pensando na bendita/maldita da minhoca por todo o restante do trajeto. Pensei em voltar e fazer algo a respeito, e foi aí que a imaginação rolou solta.
E se eu mais atrapalhasse do que ajudasse? Quem disse que ela precisava da minha ajuda? Quem me proclamou o deus salvador da minhoca? Eu mesmo não o fiz. Imaginei a minhoca com alguma consciência, com alguma(s) meta ou intenção naquela sua ação, possivelmente com alguns sentimentos também. (E é claro, isso é projeção. Estou projetando fora de mim algo que vive dentro, conteúdos de um complexo. Posso afirmar com quase toda a certeza que a minhoca não pensa, não sente e não reflete sobre sua própria existência). Imaginei que ela era uma heroína, uma desbravadora do novo mundo. Saindo das profundezas úmidas e escuras da terra, se aventurando a conhecer domínios pouco explorados por sua espécie. Mas elas são cegas... ela não veria nada do que eu via, nenhuma cor, nenhuma forma, nenhum contraste... Mas e se esse espécime em particular fosse especial, dotado de alguma sensibilidade única? Em terra de minhocas cegas, quem tem olho é rei.
Poderia ser ela, o próximo passo evolucionário de toda uma espécie? E se eu a impedisse de fazer o que precisava fazer, poderia privá-la da totalidade do mérito em fazê-lo por si mesma. Poderia tomar dela todo o sentido de sua vida. Poderia lembrá-la de sua fragilidade e incapacidade e, talvez, até mesmo fazê-la perceber-se insana. Poderia matá-la, senão com minha falta de jeito, com a minha prepotência. Afinal, ela já estava voltando sozinha para a terra. Quão longe teria ido? Quão longo e penoso teria sido seu caminho? Ou eu teria confundido cabeça e rabo e ela mal iniciara seu movimento em direção ao mundo de concreto? ("... minhoco, minhoco, você é mesmo bobo, beijou o lado errado, a boca é do outro lado").
Porém, quem sabe se, tendo ajudado a heroína, eu não fosse agora o mais novo deus no panteão dos anelídeos? Eu teria sido bem intencionado e não esperaria nada em troca. Se a veneração das minhocas me trouxesse bençãos, eu nem saberia (e também não lhes daria o devido crédito). Mas também imaginei a possibilidade dela ser uma fugitiva condenada por crimes minhocários hediondos e, portanto, foi melhor não ter intervido... Mentira, essa parte eu só pensei agora, sinal de que já posso ir finalizando.
Os significados dos símbolos não estão prontos no inconsciente como ouro no seio rochoso esperando ser minerado. Eles se formam e se apresentam no encontro junto à consciência, mais como uma reação química, em que dois reagentes iniciais se combinam na formação de um terceiro, original. É uma criação colaborativa, produto de algo que chamamos de função transcendente na Psicologia Analítica.
Esses foram alguns dos sentidos que me vieram a partir da minhoca enquanto símbolo, mas a minhoca por si mesma não é necessariamente um símbolo. E mesmo tendo sido para mim, se, possivelmente, eu tiver entendido e assimilado seu conteúdo na consciência, ela deixa de ser. O símbolo é vivo, ele É ou Não É. Sabemos que ele está vivo enquanto ele permanecer misterioso, parcialmente conhecido, mas inacabado. Quando é assim, ele funciona como ponte entre consciente e inconsciente, caso contrário, ele é apenas alegoria ou representação para algo que já é conhecido. A minhoca foi hoje para mim um símbolo, entre outras coisas, de vulnerabilidade, dúvida, ambivalência, ambição, curiosidade, cegueira (inconsciência) e sensibilidade. Talvez esse mesmo complexo me revisite outro dia, sob outra roupagem, outro símbolo...
Estar vivo é necessariamente estar no mundo, sujeito a experiências e afetos - afetar e ser afetado. A minhoca definitivamente me afetou e eu, embora não a tenha afetado diretamente, talvez a minha não ação o tenha, já que decidi não fazer nada em relação a ela. Não havia uma única possibilidade e nem apenas um destino possível ou preferível. Mas há, sim, responsabilidade sobre meus atos, proporcionalmente à consciência que tenho sobre eles. Esse é o imperativo moral que a consciência traz e não é opcional. O que temos em comum eu e a minhoca é ambos estarmos vivos e inseridos no mundo, o que nos coloca sujeitos a encontros, atravessamentos, atritos, trocas, transformações... Porém, eu tinha mais consciência do que ela e, portanto, mais responsabilidade. O que fiz sobre isso foi este texto, o qual, apesar de parecer, não é (apenas) sobre minhocas.
Hudson de Pádua Lima
Psicólogo 06/165910
São Carlos (SP)
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