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Esclarecendo a questão "mística" em Jung

  • Foto do escritor: Hudson  de Pádua Lima
    Hudson de Pádua Lima
  • 9 de mai. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 10 de mai. de 2022

No senso comum e até mesmo dentro da Psicologia em geral, Carl Gustav Jung carrega injustiçadamente a fama de ser um místico e, por consequência, fundador de uma psicologia anticientífica ou pouco científica. É notório o grande investimento que o psiquiatra suíço teve ao falar e escrever sobre religião, motivo que o levou, inclusive ao rompimento com Freud e a Psicanálise (Freud discordava de Jung de que o "instinto religioso" fosse uma motivação psíquica tão importante quanto o instinto sexual). Mas é proporcionalmente equivocado o entendimento posterior que se teve de suas ideias por críticos pouco conhecedores de sua teoria.

Jung entendia a psique como um sistema autorregulador no qual as partes conscientes e inconscientes se contrabalanceiam em busca de equilíbrio e expressão. À toda atitude consciente unilateral corresponde uma atitude inconsciente proporcional na direção oposta. Em outras palavras, toda luz projeta uma sombra. Por exemplo, se somos extrovertidos e lógicos na consciência, nossa sombra deterá a maior parte dos recursos intuitivos e sentimentais, expressos introvertidamente. Na prática, poderíamos ver um empresário com essas características, casado com uma artista plástica que é exatamente a projeção dessa sua sombra e lhes seria dito que "os opostos se atraem".

Dinamicamente assim coordenada, a personalidade tem sempre a chance de viver experiências orientadas num sentido e, mais tarde na vida ou no contato com outras pessoas, experimentar o polo oposto correspondente. Mas este mesmo mecanismo autorregulador frequentemente é fonte de contradições e tensões internas irreconciliáveis (as neuroses). Quanto mais o Ego se define e encontra identidade por um lado, pelo outro, a sombra fica cada vez mais polarizada e definida como uma perfeita imagem espelhada de desejos e aspirações completamente diversas. Quem nunca soube de um profissional extremamente bem sucedido que entra em crise no auge da sua carreira, larga tudo e passa a dedicar-se a atividades absolutamente distantes de sua área?

A longo prazo, no desenvolvimento pessoal, não basta conhecer a sombra e permitir sua expressão, ora satisfazendo-a e ora retomando o "controle" consciente. É preciso encontrar uma síntese, uma terceira atitude conciliadora que contemple ambas as partes da personalidade, de modo a integrá-la e realizá-la. O problema é que certos parodoxos e ambiguidades simplesmente não podem ser resolvidos por pura força de vontade. Muitas vezes não há uma alternativa melhor ou um caminho mais adequado a ser tomado, estamos exatamente na encruzilhada, igualmente desejosos de todas as opções disponíveis. É aí que, segundo Jung, operaria o impulso "religioso", a única via possível para transcender as contradições com as quais o Ego foi incapaz de lidar. Arrebatado, ele experimentaria a encruzilhada vista de cima e veria, ao mesmo tempo, o final de cada trilha.

Quando Jung falava em religião, não queria promover com isso a prática de qualquer credo específico. Está na verdade referindo-se à religare, a conexão com o sagrado transcendente, pois o impulso está justamente na transcendência das limitações pessoais e na ânsia por uma plenitude que escapa aos contornos individuais. Psicologicamente, essas são características dos arquétipos.

Os arquétipos são "entidades" psíquicas sem forma definida, são os moldes e os instintos essenciais sobre os quais somos fundados enquanto espécie, antes de o sermos enquanto indivíduos. É o terreno fértil do inconsciente coletivo do qual brota cada identidade única que, porém, sempre guarda semelhanças irremissíveis com todas as outras devido a essa origem comum. Estamos falando de todos os potenciais humanos para nascimento, paixão, poder, fraternidade, inimizade, paternidade, maternidade, morte, etc. Tudo o que é acessível à experiência é, antes de mais nada, uma realidade arquetípica prévia.

O conceito de arquétipo de Jung é muito correlato ao conceito de objeto ideal de Platão. O objeto ideal é perfeito porque, como o arquétipo, é completo, enquanto o objeto real é imperfeito porque é parcial, limitado (como o é a imagem arquetípica acessível à consciência).

O arquétipo da Mãe, por exemplo, contém todas as imagens possíveis de mãe que encontramos na prática: a nutridora, a narcisista, a devoradora, a misericordiosa, a punitiva, a abnegada, a criativa, a conservadora... Nenhuma mãe real pode ser, ao mesmo tempo, todas estas coisas. Não cabe, em uma pessoa, todas essas características, por mais que haja igual expressão, em momentos diferentes, para atitudes contrárias. Mas isso tudo é possível e cabe em uma Mãe "Divina". Assim o prova as manifestações culturais ao redor do mundo de todas as deusas globalmente presentes nas religiões de todos os povos.

Ainda assim, cada deusa é um símbolo ou imagem parcial do todo que é o "Arquétipo da Grande Mãe". A consciência precisa separar e estabelecer contornos para acessar um conteúdo, por isso diferentes deusas com diferentes atributos. Mas, se a consciência cede, por um momento sequer, então é possível vislumbrar o Todo, momentaneamente vivenciar o arquétipo em totalidade, sem contradições. Uma experiência desse tipo é arrebatadora, indescritível, transformadora, profundamente emocional e, que outra palavra melhor para descrever do que, sagrada? É por isso que Jung incentivava a vivência religiosa em seus pacientes, para que tivessem acesso a um arcabouço simbólico propiciador de experiências transcendentes, independente de qual fosse o enquadre em que estas se processassem. Na prática, é impossível diferenciar a experiência religiosa da divindade da experiência psicológica com o arquétipo. Para a psique, ambas são mediadas por imagem e emoção. Ambas carregam o potencial para a loucura ou para a iluminação (o desenvolvimento, cura e autorrealização).

Jung nunca se propôs a discutir teologicamente a existência ou não da divindade, mas afirmava que, fenomenologicamente, era fato a experiência subjetiva que pessoas de todas as culturas tinham com ela. Que essa experiência era natural e mediada por um impulso tão poderoso quanto o sexual e que sua vivência poderia ser extremamente terapêutica. Por isso seu interesse teórico e clínico em torno dela e seu trabalho com sonhos em psicoterapia. O contato com os símbolos que aparecem nos sonhos mostrava a mesma possibilidade de produzir a ampliação de consciência consequente de uma experiência religiosa. E, na verdade, os símbolos do arcabouço pessoal do paciente poderiam ser muito mais eficientes do que aqueles cristalizados na religião coletiva, uma vez que são constantemente atualizados de acordo com o desenvolvimento pessoal.

Em última instância, o que realmente importava para Jung era a ampliação de consciência, não só porque isto se provava terapêutico e "curava" as neuroses, mas principalmente porque aproximava a pessoa cada vez mais de sua "essência", de tudo aquilo que ela poderia vir a ser e que consistia no verdadeiro e único propósito de vida que alguém poderia ter. Irrelevante se, para isso, se tomasse o caminho do místico, a análise ou qualquer outro.

Para uma Psicologia que pretende oferecer não só a terapêutica, mas também o caminho de autorrealização individual, é imediato que uma teoria generalista e "cientificamente" embasada não baste. A ciência positivista atual, por exemplo, nada pode dizer sobre o desenvolvimento de uma personalidade para além do estado de maturação fisiológica que lhe corresponde. Mas nos mitos abundam histórias de herois que são coroados reis ao superar os desafios que se lhe interpõem ou de mortais elevados a status divino, sugerindo que algo semelhante possa ocorrer na psique. Por isso, para além das bases científicas disponíveis até então, Jung também ousou recorrer à alquimia, religiões e mitologias comparadas e contos de fada para fundamentar filosoficamente sua Psicologia Analítica. Inclusive, escolheu esse nome porque pretendia que essa Psicologia oferecesse ao ser humano sua totalidade, ao invés de apenas sua saúde (an - prefixo de negação; lise - separação) e nisso reside a diferença entre psicoterapia e análise.


Hudson de Pádua Lima

Psicólogo

CRP 06/165910

 
 
 

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2025 por Psicólogo Hudson P. Lima.

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