Garças, liberdade e consciência
- Hudson de Pádua Lima
- 20 de jun. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 29 de jun. de 2023
Perto da minha casa há uma lagoa que, vim a descobrir pesquisando agora, é uma antiga pedreira desativada. Um dos poucos senão únicos corpos d'água da cidade de São Carlos, com exceção dos rios que lhe atravessam. Ela é bem pequena, sua extensão não é maior do que uma quadra, mas tem sua beleza. Porém, o que ela tem de especial é ser a morada de centenas de garças que migram de vários cantos da cidade para dormirem à sua margem todos os finais de tarde.

A partir das 17h e pouco, elas começam a vir, ora em pequenos bandos, às vezes sozinhas e algumas vezes, em enormes revoadas com mais de 20 garças em formação de V. Da minha varanda, vejo-as vindo do sul, mas imagino que venham de outras direções também. E isso ocorre todos os dias, estejam ensolarados, nublados ou sob chuva leve (não observei em dias muito chuvosos). Sempre que posso, nesse horário, me sento com um livro, uma música ou podcast e observo por até uma hora, quando o sol se põe e o movimento delas começa a diminuir.
Fico imaginando a composição de cada grupo, projetando neles características humanas e tentando adivinhar, sobre cada bando, se é uma família, um grupo de amigos, uma organização comercial, parceiros afetivo e/ou sexuais, etc. E por que alguns estão sozinhos, se por opção, abandono, ostracismo ou atraso... Por que alguns parecem ter pressa e outros voam mais livremente, até fazendo acrobacias? Por que alguns passam tão perto da minha casa, caprichosamente contornando um edifício alto na esquina, enquanto outros fazem a rota mais direta possível, sobrevoando o rio?
Como não sou ornitólogo, etólogo ou cientista de nenhuma subárea da Biologia, sei que todas as minhas inferências são psicológicas, fantasias mais ou menos pessoais, mais ou menos objetivas. A "verdade" concreta para explicar esses comportamentos seria provavelmente de ordem muito diversa, uma combinação de variáveis envolvendo oferta de alimento, competição com outras espécies, presença de predadores, temperatura, época do ano, etc. Mas não é novidade nenhuma que nós, humanos, sempre projetamos sobre os animais nossas expectativas, sonhos, desejos, atitudes morais, medos e os mais variados sentimentos: basta lembrar das fábulas, gênero literário cuja principal característica é justamente apresentar personagens animais e uma lição de moral em seu desfecho. Além disso, a categoria de figuras mais vista no famoso teste psicológico das manchas de Rorschach são animais. Muito frequentes também nos nossos sonhos, falam sobre nossos instintos e nossa natureza mais primitiva.
Mas, voltando às garças, especificamente, o que realmente me pegou foi a regularidade desse comportamento delas: todos os dias, sagradamente, elas passam. Saber que posso observá-las, independentemente do dia da semana, inclusive em feriados e fins de semana, me trouxe um conforto singelo, mas muito significativo, inicialmente. Era uma certeza que eu poderia ter sobre todos os meus dias. Me fazia pensar em quão livres elas eram, libertas de quaisquer convenções humanas arbitrárias, legislações de tráfego aéreo, turbulências políticas ou o que seja que estivesse acontecendo aqui embaixo, na selva de pedra. Elas simplesmente seguem sua própria agenda, a natureza ainda lhes diz o que fazer e elas não relutam.
Porém, algumas semanas depois, veio uma inquietação. Será mesmo que elas são livres? Se quisessem voar em outra direção, poderiam? Seriam capazes de silenciar o instinto e deixar seus automatismos de lado em prol da liberdade individual? Quais seriam os impactos para o grupo e quais as repercussões para esses indivíduos? Seriam tidos como vanguardistas ou desertores? Eu acho que, infelizmente, eles não têm essas escolhas. Felizmente, também não devem se inquietar com isso. Essas questões nem se insinuam em seus modestos nidopálios (o que têm de mais próximo de nosso neocórtex, responsável por nossa consciência e cognição avançadas).
A benção e a maldição da consciência são só nossas, herdeiros do sacrifício prometeico, da rebeldia de Lúcifer e da insubordinação de Loki - todas metáforas míticas para essa revolução da natureza, que de repente, quis refletir a respeito de si mesma e nos incumbiu de tal tarefa. Apesar disso, também estamos longe de usufruir de um livre arbítrio pleno. Como diz Freud, a civilização é uma leve camada de verniz sobre um oceano de impulsos instintivos. Estamos em um ponto em que permanecer inconsciente não é mais uma escolha e, se insistimos nisso, os sintomas surgem e nos obrigam a olharmo-nos para nós mesmos e reconhecer que somos muito mais do que imaginávamos. E, muitas vezes, muito mais do que gostaríamos de admitir ou que somos capazes de suportar.
Lembra quando a classe inteira ia mal numa prova e apenas o nerd da turma tirava nota alta? Ele (ou ela) passava a ser rejeitado pelo grupo, porque representava o incômodo lembrete de que aquela conquista também era possível para os demais, os quais, entretanto, gostariam de permanecer inconscientes desse fato, pois isso implicaria num esforço que não gostariam de ter. Pois é... a infância passou e o bando de pássaros em V que eu desenhava agora me traz profundas questões existenciais. A psique é amoral e o que vamos fazer dela, com ela e para ela, tanto como empreitada coletiva, quanto como projeto individual é a pergunta mais urgente que deveríamos nos fazer.

Hudson de Pádua Lima
Psicólogo 06/165910
São Carlos (SP)
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