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Individuação: a melhor maneira de "olhar para o próprio umbigo"

  • Foto do escritor: Hudson  de Pádua Lima
    Hudson de Pádua Lima
  • 26 de mar. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 27 de mar. de 2021

Antes de mais nada, à despeito do título desse artigo, já adianto que individuação não tem nada a ver com egoísmo ou individualismo. Mas é sim um processo focado no Eu, em busca de tornar-se cada vez mais Si Mesmo. Na Psicologia Analítica de Jung, individuação expressa o paralelo psíquico ao desenvolvimento orgânico do indivíduo rumo a sua potencial totalidade. Ou seja, do mesmo modo que nossos corpos têm a propensão natural à crescer, desenvolver-se e atingir a maturidade biológica plena, nossa psique também o tem. A personalidade se origina inicialmente do inconsciente, indiferenciada, e, à medida em que se desenvolve, vai adquirindo uma consciência crescente, especializando algumas funções em detrimento de outras, conforme é requerida pelas necessidades do ambiente e da cultura.

Existem 4 formas básicas de se experienciar o mundo, a saber: Pensamento, Sentimento, Sensação e Intuição (expressos, respectivamente, por sentenças como: Eu penso, eu sinto, eu tenho a sensação e eu sei), além de 2 orientações possíveis adotadas pela consciência: de dentro para fora (introversão) ou de fora para dentro (extroversão). A combinação das quatro funções com as duas possíveis atitudes origina um tipo psicológico, conforme concebido na teoria junguiana. Falarei mais sobre esse assunto em outro texto, especificamente voltado para o tema. O que nos interessa aqui, relativo à individuação, é saber que, dependendo das exigências adaptativas do ambiente e da natureza inata do sujeito (base genética e arquetípica), ele desenvolve mais uma função do que as outras, bem como uma determinada atitude perante o mundo. Isso é natural, esperado e inclusive estimulado em nossa sociedade ocidental contemporânea, uma vez que contribui com nosso modo de organização social, no qual as pessoas cumprem papéis diferentes a partir daquilo que fazem de melhor (ou são alocadas nessa direção).

Assim, por exemplo, pessoas do tipo Sentimento tendem a ocupar posições de relacionamento, cuidado e orientação para com outras; o tipo Pensamento tende a desempenhar papéis analíticos, de raciocínio abstrato e tomadas de decisão estratégicas; o tipo Sensação constrói coisas ou lida diretamente com o mundo concreto, enquanto o tipo Intuição, por fim, ocupa-se de atividades artísticas ou espirituais. Este é só um exemplo ilustrativo e que de modo algum propõe-se a reduzir ou categorizar o complexo comportamento humano em caixas, existindo infinitas nuances, variações e condições dentro desse sistema, o qual é apenas um dos possíveis modos de se estudar a psique.

Pois bem, a primeira metade da vida do ser humano é dedicada à adaptação ao mundo exterior, social. A ele é requerido que estude, adote uma profissão, constitua família e contribua com a sociedade. E a grande maioria das pessoas de fato ocupam-se dessas demandas, seguindo o curso "natural" das coisas. Porém, isso não se dá sem um custo ou sem consequências. Como eu disse no texto sobre complexos (aqui), a psique tem uma natureza autônoma que funciona à base de autorregulação e compensação. Isso significa que, à todo excesso ou unilateridade da consciência, haverá uma resposta inconsciente no sentido contrário, buscando um equilíbrio. Então, à medida em que vamos nos tornando cada vez mais diferenciados enquanto indivíduos, há uma tendência coletiva inconsciente para o retorno ao todo indiferenciado - este que pode ser experimentado tanto destrutivamente como caos desordenado quando construtivamente enquanto plenitude divina. É deste último que se trata a individuação.

A princípio, individuação é um processo natural, espontâneo e autônomo ao qual qualquer ser humano está suscetível, na medida em que não é impedido, barrado ou inviabilizado por distúrbios específicos (Jacobi, 2013). Consiste numa busca de integração, pela consciência, de todos os conteúdos do inconsciente pessoal, numa conciliação dos opostos psíquicos, uma intensa vivência do inconsciente coletivo e uma reorganização de toda a estrutura compartimentalizada da psique em direção à unicidade, rumo a realização do Si Mesmo (ou Self). Self é o núcleo (pessoal e arquetípico) propulsor de todo esse desenvolvimento, a partir do qual toda a energia psíquica se origina e para o qual busca sempre retornar. Trata-se da essência mais íntima do ser, aquilo que em muitas tradições espirituais foi chamado de alma ou espírito e, à nível coletivo, divindade.

De fato, muitos caminhos religiosos e espirituais dedicam-se deliberadamente à promover esse desenvolvimento pessoal através de práticas reflexivas, meditativas, devocionais e iniciáticas, valendo-se de arcabouços simbólico-culturais específicos como facilitadores do processo. Jung pesquisou extensivamente várias tradições religiosas, encontrando na alquimia medieval a metáfora mais expressiva para esse fenômeno. É a busca pela famosa pedra filosofal ou pelo transformar chumbo (o inconsciente grosseiro) em ouro (a consciência espiritual refinada). No Cristianismo, o paralelo estaria em seguir o exemplo de Jesus, filho de Deus (individualidade fruto do inconsciente) nascido na Terra para redenção dos pecados da humanidade (integração dos conteúdos da sombra) e retornar ao Pai enquanto ser divino por si mesmo, unidos na totalidade (inconsciente pessoal manifesto e realizado junto à matriz coletiva). De modo análogo, pode-se identificar em outras religiões a mesma base arquetípica que expressa o caminho do ser humano enquanto proveniente de uma fonte divina, passando por uma série de experiências individuais de aprendizado e/ou realização pessoal, até reunir-se de volta ao Sagrado e/ou assumir um status divino por si mesmo. Em mitos antigos e modernos, esse percurso é retratado na Jornada do Herói, sobre a qual retomarei em outro post.

Representação do desenvolvimento humano enquanto processo contínuo, espiritual e biológico, psíquico e físico, expresso e mediado por símbolos

Uma alternativa ou possibilidade complementar para o vivenciar religioso da individuação está na análise ou terapia junguiana. Qualquer forma de psicoterapia pode ajudar no autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, mas aquela como concebida por Jung dispõe de um instrumental particularmente eficiente na viabilização do processo. Enquanto na via espiritual intenciona-se deliberadamente ingressar na jornada através de um sistema simbólico coletivo, na análise a pessoa é acolhida e estimulada a percorrer o mesmo caminho, de forma individual. Em ambos, a base é a mesma: valer-se do poder dos símbolos como mediadores entre a consciência e a inconsciência, capazes de conciliar pares de opostos e promover a sua síntese. Isso é possível graças à natureza dual do símbolo enquanto imagem e portador de significado. É da natureza do inconsciente produzir e se expressar em imagens, ao mesmo tempo que é da natureza do consciente atribuir significados e buscar sentido.

Na prática, o processo de individuação é uma tarefa para a segunda metade da vida, quando (geralmente) já se cumpriu as exigências externas e a energia e atenção podem voltar-se para dentro. Não implica em um despojamento ou apagamento do Ego, muitas vezes considerado o vilão da humanidade e opositor à verdadeira espiritualidade. Pelo contrário, para entrar em contato com o inconsciente é preciso um complexo do ego forte, flexível, tolerante à contradições, resiliente diante de mudanças e disposto a transformação. Só assim é possível alcançar um desenvolvimento equilibrado das quatro funções da consciência, necessárias à assimilação e integração dos conteúdos inconscientes. Assim, procede-se ao confronto com a Sombra e todos os seus complexos, explora-se e desenvolve-se o componente psíquico sexuado complementar (as mulheres encontram o Animus, seu masculino interior, enquanto os homens fazem o mesmo com a Anima, o feminino interior) e por fim segue-se rumo ao princípio espiritual, guiado pelo arquétipo do velho ou da velha sábia. A totalidade assim alcançada é representada, entre outros símbolos, pela universal e onipresente mandala.

Para Jung, empreender a jornada de individuação é não só um objetivo pessoal, como também uma obrigação moral e coletiva. Para ele, apenas a partir das mudanças individuais poder-se-ia alcançar verdadeiras transformações coletivas, imprescindíveis para uma tomada de consciência global necessária para a adoção de um estilo de vida mais sustentável e antídoto para as grandes catástrofes mundiais. Apesar de ser tarefa de toda uma vida, e, na maior parte das vezes, ficar inacabada, comprometer-se com o processo da individuação expressa nosso destino e dádiva irremissíveis enquanto seres humanos. Finalizo este texto com uma citação de Jung, para trazer diretamente da fonte um pouco de sua sabedoria atemporal e também porque ele expressa, nessa passagem, o meu ideal enquanto psicoterapeuta, crente no potencial transformador da terapia como tendo início no indivíduo.


"Na medida em que coletividades nada mais representam que amontoados de indivíduos, seus problemas também são um amontoado de problemas individuais. Uma parte se identifica com o homem superior e não pode descer até o fundo, e a outra parte se identifica com o homem inferior e quereria alcançar a superfície. Esses problemas jamais serão solucionados através da legislatura e de medidas artificiais. Só poderão ser solucionados por uma mudança geral de atitude. Essa mudança não começa com propaganda e aglomeração de massas e nem sequer com violência. Começa com modificações no indivíduo. Irá processar-se como transformação de suas tendências e aversões pessoais, de sua cosmovisão e seus valores, e é só o acúmulo dessas transformações individuais que poderá produzir uma solução coletiva."

Jung, C. G. (2011, 1971)


Bibliografia consultada:


Jacobi, J. (2013). A psicologia de CG Jung: uma introdução às obras completas. Editora Vozes Limitada. Jung, C. G. (2011). Psicologia e religião. Editora Vozes Limitada.


Hudson de Pádua Lima

Psicólogo CRP 06/165910


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