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O conto da princesa Kaguya: quando a individuação falha

  • Foto do escritor: Hudson  de Pádua Lima
    Hudson de Pádua Lima
  • 6 de jun. de 2022
  • 8 min de leitura

Que a individuação seja, em último termo, irrealizável, sabemos e estamos razoavelmente confortáveis com isso, contentando-nos apenas com a busca da totalidade utópica. Mas e quanto aos riscos do processo e mesmo a possibilidade de falha? Existem e não são insignificantes. Jung dizia que a “natureza é aristocrática” e a “individuação não é para todos”, mas na prática clínica e na empolgação teórica muitas vezes ignoramos esses alertas. O Conto da Princesa Kaguya exemplifica um processo de individuação que falhou.

A animação do estúdio Ghibli (2013), disponível na Netflix, é uma adaptação de “O Conto do Cortador de Bambu”, um conto japonês do século X (período Heian). Dirigido por Isao Takahata, a animação tem traços delicados e minimalistas em aquarela e carvão, a história tem uma progressão lenta e leve, mas termina de forma melancólica, quase trágica. Segue um breve resumo (parcialmente extraído de Cinema com Rapadura):


Um humilde camponês certo dia encontra em um broto de bambu a miniatura de uma princesa. Ele a entrega à sua esposa e o ser se transforma em um bebê. A mulher misteriosamente cria leite para alimentá-lo e este começa a crescer mais rápido que o normal, conforme a natureza se movimenta com a chegada da primavera. Conhecida pelos outros jovens dos arredores como Takenoko (pequeno bambu), devido à velocidade de seu crescimento, a menina demonstra uma personalidade pura e aventureira. Takenoko cria forte conexão com as outras crianças e com a natureza enquanto rapidamente se torna uma adolescente. Após encontrar ouro e vestes de tecidos nobres dentro de bambus, o pai adotivo da garota se convence que é o desejo dos Céus que sua filha seja criada na capital como uma princesa. Parte, então, a contragosto e é educada nas tradições aristocráticas para tentar domar seu espírito livre. Após sua menarca, recebe o nome de Kaguya, devido à sua impressionante beleza como uma “luz brilhante”.

Apesar da riqueza provida sobrenaturalmente pelos tesouros do bambuzal, para inserir-se formalmente na nobreza, o pai de Kaguya deve oferecê-la em casamento a um pretendente de alta estirpe. Cinco candidatos se apresentam, declarando seu amor e prometendo maravilhas indizíveis à princesa. Avessa à ideia, Kaguya diz que desposará aquele que de fato lhe trouxer algum dos tesouros prometidos, o que seria impossível, por tratarem-se de objetos míticos. Assim, livra-se dos pretendentes, mas atrai o interesse do próprio imperador. Tomada em seu abraço forçado, ela apela à Lua e pede para ir embora daquele lugar.

Nesse ponto, Kaguya lembra que é um espírito lunar que veio à Terra com o desejo de experimentar a vida humana. Seu pedido desesperado foi ouvido e, apesar de arrependida, não tem mais escolha: em 15 dias a comitiva dos espíritos da Lua virá buscá-la. Desesperada, pede aos pais para voltar para o morro onde passou a infância, para passar seus últimos dias onde realmente foi feliz. Lá, reencontra-se com Sutemaru, um jovem amigo para o qual se declara e lamenta a vida feliz que poderiam ter tido juntos se nunca tivesse ido à capital a desejo do pai para ser uma princesa. Mas o encontro não passa de um sonho. Quando a comitiva lunar chega, Kaguya não tem escolha senão acompanhá-la, recebendo a coroa que denota seu status espiritual e vestindo o Véu da Lua que leva embora todas as suas lembranças.

Ao contrário das animações da Disney, esta e outras do estúdio Ghibli não hesitam em retratar os dramas como eles são, muitas vezes sem as reviravoltas mágicas que salvam o protagonista. Mas, apesar do destaque dado à princesa e ao próprio nome do filme, penso que podemos ver a história como tratando, na verdade, da trajetória de seu pai adotivo, o ambicioso camponês. E, por esse olhar, podemos ressignificar a narrativa e extrair algumas reflexões.

O cortador de bambus é um homem simplório do campo, casado, já idoso e sem filhos. Poderíamos nos perguntar se não quiseram ou não puderam ter filhos devido às dificuldades financeiras ou se um dos membros do casal é estéril, mas a verdadeira esterilidade parece ser a psíquica, conforme percebemos sua estreiteza de personalidade, interessado apenas na ascensão social. Valorizando apenas os bens materiais e estabelecendo relações em termos de ganho e de perda, o camponês parece ser um tipo Pensamento. Esta é uma das quatro funções da consciência como concebidas por Jung, oposta e complementar ao Sentimento (as outras duas são Sensação e Intuição, funções irracionais de percepção). O Pensamento é uma função racional de julgamento, caracterizada pela atribuição objetiva de valores às coisas segundo critérios pragmáticos, enquanto o Sentimento o faz empregando critérios subjetivos.

O bambuzal, fazendo as vezes de floresta encantada dos contos de fadas europeus, pode ser entendido como o inconsciente do camponês, do qual passou a vida extraindo apenas o mínimo suficiente para sua sobrevivência, ou seja, a mínima consciência. Um dia, porém, dessa matriz inconsciente brota uma figura feminina numinosa, que imediatamente o fascina. Podemos pensar na princesa como a Anima projetada do pai, numa segunda tentativa de fazê-lo conhecer seu lado feminino e sentimental (atributos lunares), algo que não conseguiu em seu casamento, uma coniunctio estéril.

A garotinha Takenoko encanta a ele e sua esposa com sua ingenuidade, espontaneidade e pureza. Destemida, ela se relaciona livremente com a natureza e com as crianças que acaba de conhecer, mesmo que inicialmente zombem dela. Demonstra um verdadeiro encantamento com tudo o que vê: árvores, riachos, animais e quer participar de tudo isso. Além de uma figura de Anima, podemos pensar nela como a projeção da função Sentimento inferior do camponês. Uma vez projetada, porém, a imagem passa a ter plena autonomia, não mais subordinada ao pai.

A hipótese do bambuzal como inconsciente é reforçada quando mais uma vez provê ao camponês dádivas mágicas: ouro e vestes luxuosas. O homem imediatamente interpreta isso como a vontade dos Céus em fazê-lo rico como forma de prover uma vida requintada à princesa. É como se fosse o Self apontando ao Ego o caminho para sua individuação, porém não há contato verdadeiro, apenas o camponês relacionando-se narcisicamente consigo mesmo. Ao invés de usar o ouro (símbolo de consciência) para fazer sua família feliz e próspera, ele adota as personas sociais da nobreza (representadas pelas vestes) e constrói um palácio na capital. O pequeno casabre que era seu ego incipiente infla-se na ostentação de um grande palácio.

Abandonando a vida simples e os amigos, esposa e princesa cedem à vontade do cortador de bambus e a família parte do campo. Takenoko quer agradar ao pai, o qual não é abertamente tirano. Ambicioso, a riqueza ainda não lhe basta, precisa do status nobre confirmado pelo casamento da filha, subvertendo suas motivações mesquinhas como se fossem demonstrações de afeto e preocupação com a felicidade da filha. Inicialmente, a princesa até se entusiasma com o luxo e o colorido de suas vestes reais e parece identificar-se com a persona que lhe é imposta.

A cerimônia real de nomeação, porém, estabelece um marco importante na história. Takenoko não era realmente um nome, significava apenas “pequeno bambu”, como as crianças chamavam a princesa devido sua origem e rápido crescimento. Nomeada Kaguya, sua identidade individual (ou a possibilidade dela) começa a se delinear (“luz brilhante”, a consciência). Ela começa a ensaiar uma personalidade própria, demonstrando assertividade e resistência às convenções sociais, como exemplifica sua recusa em tirar a sobrancelha e tingir os dentes.

A constante pressão do pai e insatisfação de sua instrutora acabam demovendo-a de sua vontade. Junto à mãe adotiva, consola-se com um pedaço de jardim, no qual consegue rememorar as lembranças felizes da infância no campo. A camponesa não tem papel nenhum na história, é apagada e não tem vida própria, pois não carrega mais (ou talvez nunca tenha carregado) nenhuma projeção anímica do marido.

Entretanto, Kaguya mantém-se firme na recusa às propostas de casamento. Não sente a menor atração pelos tesouros e riquezas que os amantes lhe oferecem e questiona-os sobre como podem amá-la sem nem ao menos nunca a terem visto. Como próprio de um tipo Sentimento, ela só se realiza com relações afetivamente significativas e conexões reais, como as que experimentava com Sutemaru (o rapaz do campo) e as crianças.

Escapando dos pretendentes, porém, atrai o interesse do imperador. Este solicita um encontro com ela e toma-a em seus braços contra sua vontade. Nesse momento, Kaguya grita em desespero e desperta para sua natureza mágica, desmaterializando-se e escapando de seu abraço. Foi a Lua, para a qual constantemente pedia socorro, quem a atendeu e esta, entendendo seu sofrimento, prometeu buscar-lhe de volta em 15 dias.

Kaguya, que é pura “luz brilhante” não carrega sombra ou parece incapaz de suportar confrontá-la. Ao invés de rebater com igual violência o assédio do imperador, ela se anula, descorporifica-se. Igualmente, quando o pai a pressiona para o casamento de modo que seja oficialmente nomeado cortesão, ela diz que o fará, se for de seu desejo, mas imediatamente em seguida se matará. Ela prefere deixar de existir a assumir sua escuridão, pois a escuridão só pode pertencer ao seu pai – ele é mau, ela é boa, ele é autoritário, ela, abnegada.

Por isso Kaguya não pode resistir à convocação da Lua e permanecer na Terra: devido à sua própria condição sublimada, incorpórea. Ela personifica a fase alquímica da Albedo, a pureza, a santidade, evidente em sua pele alva e beleza de outro mundo. Pulando a etapa precedente da Nigredo (o confronto com a sombra), Kaguya não consegue proceder à Rubedo e encarnar propriamente, assumindo uma existência física plena. Assim, nem bem Coagula e já Dissolve novamente, engolida pelo inconsciente que negou.

Assim, ao final do prazo, chega a comitiva dos espíritos da Lua, em festa, para buscá-la. O exército de seu pai está a postos para rechaçá-los, mas contra o inconsciente o ego nada pode. Os espíritos colocam todos em sono profundo conforme avançam e chegam até a princesa. Kaguya, também tomada por essa força irresistível, vai de encontro a seus iguais. É coroada, como símbolo de seu status divino e, antes de ser vestida com o Véu da Lua (que apagará todas as suas memórias da breve vida terrena), despede-se dos pais adotivos. Parte, então, de volta à misteriosa existência da qual usufruía antes, no mundo arquetípico. Porém, no último instante, olha para trás com os olhos marejados de lágrimas, permitindo supor que ela não esqueceu de todo o que se passou.

O tom dramático desse desfecho é trágico e melancólico, tudo perde a cor e é tomado apenas pela alvura tantalizante da lua. Porém, ao meu ver, a tragédia não se deu para Kaguya, e sim para o cortador de bambus. Ela é imortal e parece ter conservado em alguma medida sua memória; quem sabe possa voltar um dia e propriamente nascer e ter uma vida real? Nessa semivida que teve, não nasceu, foi projetada. Já o camponês, perdeu irreparavelmente sua imagem projetada de anima e a chance de integrá-la. Estará, doravante, “des-animado” e, idoso como está, provavelmente encontrará o fim de seus dias em amargura.

Esse é um dos riscos da individuação. O sujeito precisa integrar suas partes cindidas e desconhecidas, das quais só pode tomar consciência se projetá-las em objetos externos e através deles travar contato. Porém, a retirada da projeção e a integração subsequente não são automáticas. Demanda-se esforço deliberado e coragem para recolher os conteúdos que lhes são próprios, pois estes são tanto angelicais quanto demoníacos e a consciência deve ampliar-se o suficiente para abarcar ambos. Esse processo é doloroso e muitos o evitam. Povos indígenas descrevem esse estado como uma perda de alma, mas têm seu xamã para buscá-la de volta no mundo dos espíritos. E nós, “civilizados”, que esperança temos?


Hudson de Pádua Lima

Psicólogo

CRP 06/165910

 
 
 

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2025 por Psicólogo Hudson P. Lima.

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