O curador está no paciente, não no terapeuta
- Hudson de Pádua Lima
- 18 de abr. de 2022
- 4 min de leitura
A maioria das pessoas busca psicoterapia esperando ser curada, pelo terapeuta, de algum sintoma ou condição mental patológica. Porém, ao contrário do médico, munido de medicamentos específicos para queixas específicas para a cura do corpo, o psicoterapeuta não sabe de antemão de que o paciente precisa para ser curado e o único “medicamento” de que dispõe é a tomada de atitude deste.
A propósito, falar de cura em contexto psicológico é algo muito relativo e delicado. Os padrões “normais” para a psique são muito menos definidos do que aqueles para o corpo, e mesmo em relação a este, não dizem muita coisa além de descrever uma tipicidade com que se observa certas características numa população. É possível dizer, por exemplo, que é normal a ocorrência dos dentes sisos, mas isso está longe de ser uma situação ideal, uma vez que eles costumam causar muitos problemas.
É mais útil e realista falar que, em psicoterapia, buscamos transformação. Ninguém entra num processo terapêutico se não espera alguma mudança ou se está completamente satisfeito com a vida que leva. Muitas vezes, no entanto, se surpreendem ao descobrir e relutam em aceitar que a única coisa que podem mudar para ter uma vida melhor são a si próprios - e nem mesmo o terapeuta pode fazer isso por eles. Mesmo porque, o terapeuta pode até supor, mas não saber com certeza o que o paciente realmente precisa. Mas o inconsciente sabe e é aí que o analista desempenha seu papel.
O inconsciente, na visão analítica de Jung, não guarda apenas o material reprimido do passado, mas também a energia dinâmica e criativa que impulsiona a personalidade para seu desenvolvimento futuro. Isso é possível porque, a nível coletivo, inconscientemente compartilhamos todos os potenciais de realização humana (chamados arquétipos), incluindo, por exemplo, o de curador.
Como potencial psíquico, um arquétipo expressa a totalidade de um aspecto da natureza, contendo em si todas as polaridades possíveis deste aspecto. O arquétipo do curador é melhor referido então como o “arquétipo do curador ferido”, pois doença e cura são polos de um mesmo fenômeno (como exemplifica Omulu na mitologia afro-brasileira, orixá que pode trazer consigo a varíola, mas também curá-la). Quando realizados individualmente, porém, estes arquétipos são expressos na forma de complexos e têm suas polaridades separadas - uma manifesta na consciência e a outra latente no inconsciente. É essa separação que chamamos de neurose e que costuma trazer sofrimento psíquico.

Podemos dizer que um terapeuta é alguém com um forte complexo de curador. Por condições intrínsecas de sua natureza e por sua história de vida pessoal, o arquétipo do curador ferido foi constelado (ativado) em seu desenvolvimento, afetando e influenciando sua personalidade, inclusive em sua escolha de carreira. A nível consciente, ele assume o papel do curador, mas inconscientemente possui alguma ferida em si próprio que constantemente busca curar ao tentar fazer isso pelos outros.
Como natureza de tudo aquilo que é inconsciente, o desconhecido em si é projetado e visto no outro. Na situação clínica, temos o paciente com um complexo do doente constelado e que, incapaz de encontrar em si mesmo o curador, busca-o no terapeuta. E o terapeuta, geralmente inconsciente do ferido que também é, vê no paciente a pessoa necessitada de cura. Assim, estabelece-se uma dupla de trabalho em que cada membro complementa o outro em sua atitude consciente unilateral.

É importante frisar que um bom terapeuta deve ter consciência de suas próprias feridas a fim de não projetá-las em seus pacientes. Acontece que, no momento da sessão, o terapeuta fica relativa e temporariamente inconsciente de tais feridas, simplesmente porque seu foco precisa ser o outro e, desse modo, a dinâmica descrita acima se processa. De maneira semelhante, em outra área de sua vida, o paciente também pode ser conscientemente um curador (por exemplo, se for um profissional da área de saúde) mas no que se refere a si em sua vida íntima, está inconsciente de tal potencial.
No decorrer do processo terapêutico, o analista deliberadamente permite que esta projeção do paciente ocorra sobre ele e até mesmo se coloca como anteparo para ela. Conforme o paciente amadurece, o terapeuta gradativamente o estimula a recolher a projeção e a reconhecer em si as características que tanto buscava ou admirava nele. Este é um dos motivos pelos quais o terapeuta deve ser alguém com o qual o paciente não se relaciona em outros âmbitos - relações prévias teriam suas próprias projeções envolvidas e interfeririam nessa dinâmica.
Quando o polo curativo do complexo do paciente finalmente é ativado, este começa a, conscientemente, assumir as responsabilidades sobre seus sintomas e a trabalhar pelas mudanças necessárias rumo a uma melhor qualidade de vida. O que de fato muda nesse ponto é que o paciente se torna mais completo ao integrar em si as polaridades até então separadas na condição da neurose. Infeliz ou felizmente, não há passe de mágica e nem atalhos que substituam a tomada de atitude pessoal, mas o terapeuta é um facilitador e a psicoterapia é uma catálise para que isso aconteça.
Hudson de Pádua Lima
Psicólogo
CRP 06/165910
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