O ninho ao lado da lixeira, uma crônica de agosto
- Hudson de Pádua Lima
- 7 de ago. de 2022
- 5 min de leitura
De novo uma arvorezinha, novamente em uma caminhada de final de tarde (referência à minha crônica anterior), mais especificamente, no primeiro domingo de agosto. Esse mês ventoso, meio estéril, sem feriados, indiferente à nossa inquietação enquanto prolonga-se indefinidamente até que alguém nos acorde em setembro (como dira "o" Green Day) para continuar a vida até o final de mais um ano. Eis que a seguinte imagem me atravessa:

Um singelo ninho, em um arbustinho desnudo, a poucos centímetros da rua, ao lado de uma cesta de lixo. Aparentemente abandonado, a única coisa que nele repousa é uma folha amarelada.
A primeira coisa que me passou pela cabeça foi: "quanta ingenuidade", pensando no passarinho que o fez. Porque, provavelmente, foi um projeto fadado ao fracasso desde sua concepção, eu duvidava que algum ovo tenha sido chocado ali, tão vulnerável, tão exposto. E se foi, teria sido um milagre se o filhote tivesse sobrevivido.
Continuei andando, ainda não tinha tirado a foto. Então o segundo pensamento que me ocorreu, mais otimista, me fez voltar: "que poético, há uma beleza ambígua aqui, ninho e lixo, lado a lado". Aí resolvi registrar essa cena, um pouco encabulado com a pieguice do ato, mas também tocado pelo símbolo. Desse outro ponto de vista, é possível ver que, ao contrário do berço natural, o "ninho" de metal não estava vazio:

A imagem se tornou símbolo para mim por sua capacidade de dinamizar conteúdos internos, não necessariamente por sua configuração estética. Poderia ser um sonho: "sonhei que, ao lado de uma lixeira, havia um ninho vazio..." e, como um sonho, pode ser amplificado e circumambulado (rodeado, visitado e analisado por vários ângulos). Segui meu caminho, com questionamentos que seguiram essa direção, sonhando a imagem.
A natureza falhou com esse pássaro? Seu instinto não o preveniu da má escolha do local para perpetuar sua espécie? A menos de 200 metros havia um bosque com centenas de escolhas melhores. Esse espécime em particular era preguiçoso e, por isso mesmo, teria sido bom que houvesse falhado em passar seus genes adiantes? Percebo nesse ponto como já estou projetando sobre esse pássaro hipotético questões que só poderiam ser minhas, afinal, esses qualificadores e essa preocupação moral só podem ser aplicadas a humanos e por humanos.
Porém, prossigo. E se, na verdade, esse pássaro foi é muito esperto? Lixo pra mim, para ele é uma fonte fácil e sempre disponível de alimento. Se seu sustento estivesse assim garantido, ela (agora lembro que é uma mãe em potencial) poderia compensar a falta de segurança do ninho com sua presença constante. De repente, ao invés de preguiçosa e inepta, havia uma ave astuta e heroica, adaptada ao cenário urbano, talvez até mais apta à sobrevivência do que seus pares mais "conservadores".
Ao longo da caminhada, noto as muitas outras cestas de lixo que, de outra forma, talvez me passassem despercebidas. Todas cheias, resultado de um final de semana que, para muitos, é regado a excessos compensatórias pela semana árdua precedente. Os rejeitos e sobras seriam recolhidos na manhã seguinte, condição indispensável para seguir nesse ritmo desenfreado de consumismo inconsciente e inconsequente. Qual lixo seria mais tóxico e qual negligenciamos mais, o que produzimos no mundo ou aquele rejeitamos na psique? Há separação? São mesmo distintos?
Muito do lixo concreto pode ter uma utilidade se for separado e seletivamente encaminhado. A natureza faz a parte dela com o lixo orgânico, o pássaro hipotético daquele ninho poderia até ter se aproveitado dessa oportunidade. A outra parte, obra humana, logicamente deveria caber à humanidade reciclar. Mas o fazemos mal e porcamente, pois para o Ego (a partir da perspectiva da persona), isso significa esforço, tempo, dinheiro e consciência moral. Tanto melhor se só for tudo indiscriminadamente rejeitado e ignorado, pois a única coisa que importa é distinguir aquilo que sou Eu e que é Meu de tudo aquilo que não É. E a Sombra não sou Eu, o lixo não é meu.
Se tudo isso me toca, preciso pensar simbólica e concretamente sobre o que estou fazendo com meu lixo e minha sujeira. Em minha casa concreta, separo recicláveis de não-recicláveis, nutro a esperança de estar fazendo a minha parte, mesmo que um amigo tenha me dito certa vez que meu pequeno esforço não valia de nada se comparado à produção massiva e irregular de rejeitos pelos setores industrial e comercial. Talvez ele tivesse razão. Talvez fosse a estratégia defensiva dele pra se eximir da própria responsabilidade. Minha própria ingenuidade a esse respeito também poderia ser defensiva, me protegendo da necessidade de agir onde realmente importa (na política, por exemplo).
Mas e em minha casa psíquica, como andaria a sujeira? Quão poluída e negligenciada estaria minha Sombra, com todos os rejeitos sociais, morais, estéticos, conceituais, etc. que minha personalidade consciente é incapaz de lidar? Estaria furiosa, sobrecarregada, doente, violenta? Ou será que, como na Alquimia, uma saudável Putrefatio (operação de decomposição da matéria prima com que se inicia a Grande Obra em busca da Pedra Filosofal) estaria se processando, fermentando em preparação para nutrir os rebentos de um desenvolvimento psíquico próximo?
Ainda simbolicamente, por que uma expressão de meu Espírito (tradicionalmente associado a e representado por aves, como a águia de Zeus, os corvos de Odin e o falcão de Hórus) sentiria necessidade de descer tão densamente na matéria e na Sombra na tentativa de conceber nova vida? Seria uma recomendação para voos mais baixos, mais realistas, mais concretizáveis? Ou poderia indicar, pelo contrário, uma boa relação entre esses polos psíquicos e a possibilidade de integração? E quanto à vulnerabilidade e exposição desse arranjo, ninho ao lado de uma lixeira, inspira cautela e preocupação ou denota criatividade?
Mas até agora, por mais que tenha me esforçado por ampliar e enriquecer a imagem, estive pensando nela de forma unilateral. Ou isso ou aquilo, pássaro macho ou fêmea, ninho para a vida e lixo para a morte. Geralmente o casal se envolve junto na manufatura do ninho e na encubação, alternando tarefas de modos variados, a depender da espécie.
Assim, para toda tese, uma antítese, mas também várias possíveis sínteses. Então, das possibilidades que me ocorreram, mais provável e acertadamente é que sejam todas válidas ao mesmo tempo, em arranjos dinâmicos, ora pesando mais de um lado do que do outro, mas sempre em movimento, pois enquanto há vida, há transformação. E sempre há também o desconhecido, o que fica fora de alcance, o desafiador, o sagrado, o que inspira medo, mas também esperança. O filhote de passarinho que, se não alçou voo no mundo concreto, com certeza o fez no imaginal e continua vivendo em mim.
Hudson de Pádua Lima
Psicólogo
CRP 06/165910
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