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Quanto mais luz, mais sombra: porque apenas positividade não resolve nossos problemas

  • Foto do escritor: Hudson  de Pádua Lima
    Hudson de Pádua Lima
  • 30 de mar. de 2023
  • 6 min de leitura

Nosso estilo de vida atual tem se tornado cada vez mais regido pelas regras do mercado: tudo deve ser muito rápido, eficiente e, de preferência, barato. O trabalho engole o nosso tempo e nós tentamos sobreviver seguindo da melhor forma possível as regras do jogo. Assim, buscamos a maior praticidade e velocidade em tudo o que fazemos: nas refeições, nos tratamentos estéticos, na construção civil, em casa, com filhos e animais de estimação e até na área da saúde, recorrendo cada vez mais à medicalização para "resolver" os eventuais problemas que aparecem e são empecilhos para a continuidade desse ritmo acelerada. Assim, surgem as promessas rápidas, fáceis e milagrosas de cura e transformação, vendidas numa embalagem super positiva, de luz e gratidão, argumentando que afirmações positivas, fé, otimismo, perseverança e a mudança de "mindset" são suficientes para superarmos os problemas da vida. Mas será que essa abordagem realmente funciona na saúde mental e é capaz de ajudar o paciente/cliente? Discorrerei abaixo a minha opinião a partir do referencial junguiano.

Na Psicologia Analítica, sabemos que o Ego é apenas uma parte (e uma parte pequena) da psique, cujo papel é gerenciar a consciência, mas não assumi-la como sua ou para si. Além dele, há a atuação de diversos complexos autônomos, cada um com suas próprias capacidades, limitações, afetos, crenças e sombras. Assim, é tecnicamente errado falar em "autossabotagem", afinal, se fosse apenas o Ego consigo mesmo, porque ele haveria de atentar contra si? O que acontece, na verdade, é a interveniência de um desses complexos, que irrompe à consciência e tenta impor sua própria agenda.

Por exemplo, uma pessoa está indo muito bem em sua vida profissional, está trabalhando num ritmo acelerado, batendo metas e muito próxima de uma promoção, ao custo, porém, de não ter nenhum tempo para lazer ou diversão. Sua criança interior (que é um dos complexos que todos temos, organizando nossas experiências com tudo que se refere à infância e ao infantil) está sem nenhum espaço de expressão e começa a ficar irritada. Em algum momento, algo pode funcionar como gatilho, e o que seria uma pequena irritação por um impressora travando se torna A grande irritação de uma Criança negligenciada, constelando o complexo. Aí o que vem em seguida costumam ser reações exageradas, dramáticas, irracionais e infantis (mesmo que se tratasse de qualquer outro complexo), e que, no caso, provavelmente arruinariam as chances da promoção.

Como a grande maioria de nós não reconhece a existência desses complexos ou os ignora, eles vão parar em nossa Sombra. Sempre que afirmamos algo sobre nós mesmos, como "eu sou caridoso, altruísta e feliz", necessariamente há afirmações em contrário implícitas: "eu sou mesquinho, egoísta e infeliz". Isso simplesmente acontece, tenhamos consciência ou não. É o modo como funciona o mundo dual: se algo está manifesto, está manifesto por que passou da inexistência para existência, foi de um estado A para um estado B. E, para a psique, o estado A é tão real quanto o B. Dizendo de outra forma, só podemos ter consciência de algo através de contrastes de sombra e luz. Citando Jung, ele diz: "Toda afirmação psicológica é provisória, só é verdadeira enquanto não for invertida. Por isso, as asserções a respeito da psique nunca são definitivas, mas estão sempre sujeitas à futura reinterpretação". Na prática, isso quer dizer que os conteúdos da consciência e do inconsciente são sempre correlativos e que Ego e Sombra são codependentes. O que hoje está na minha consciência, amanhã pode ser esquecido ou reprimido e virar sombra, enquanto que o que hoje era inconcebível e desconhecido, amanhã pode ser conhecido e viável, passando da sombra para a consciência e tornando-se, portanto, acessível ao Ego.

O que eu quero dizer é que sempre há uma troca, sempre há movimento de energia psíquica de um lugar para o outro, ela nunca está ausente. E, por isso, é impossível eliminar alguma característica da personalidade, tudo o que podemos fazer é realocá-la para um lugar mais adequado. Segundo Aristóteles, é belo e justo aquilo que ocupa o seu devido lugar na natureza. A degradação não tem lugar no ser humano, senão o corrompe e desmoraliza, mas deve estar no lixo, de modo que ele se decompõe e não se acumula indefinidamente. Assim deve ser também na psique. A agressividade, por exemplo, pode ser direcionada para um esporte competitivo de alto impacto. O criticismo pode ir para um lugar técnico, onde é desejado, por exemplo, na crítica gastronômica e cinematográfica. A inveja pode ser reajustada como critério valorativo para definir o que é importante e desejado e o ciúmes, para explicitar o valor daquilo que já se tem e é precioso, e assim por diante. O objetivo não é a iluminação, mas a busca pela totalidade - eliminando excessos e evitando unilateralidades.

Mesmo as virtudes devem ser ponderadas, pois em excesso ou escassez, convertem-se em suas respectivas sombras.

Nossa missão é fazer isso sem cindir com o paradoxo: como posso amar e odiar a mesma pessoa? Como posso querer duas coisas tão diferentes ao mesmo tempo? Como posso sentir desejo e nojo pela mesma coisa? Ora, porque isso que acredito ser "Eu", na verdade é múltiplo e multifacetado, bem como são todas as outras pessoas com quem me relaciono. Somos seres complexos e profundos, ao custo de aparentes contradições. E, para apreender isso de fato, é necessária uma verdadeira expansão de consciência. Uma coisa retroalimenta a outra: as contradições pessoais, da vida e dos outros forçam caminho no meu entendimento, de modo que minha compreensão sobre o mundo precisa se expandir. Uma vez que ocupam lugar dentro de mim, minha consciência naturalmente se amplia para acomodar as novas concepções, tornando-se mais receptiva para novas adições posteriores, quando novamente for necessário rever meus conceitos e crenças.

Mas, apesar da expansão, a sombra proporcionalmente também cresce, até porque, ela é o "depósito" para o qual despachamos o que não serve mais e também o "estoque" temporário para os conteúdos novos que estão chegando. E é só por isso que a sombra é um problema: por conter as duas coisas simultaneamente, o lixo e as sementes de potencial futuro. Porém, o lixo seco pode ser reciclado e o orgânico pode servir de adubo para essas sementes germinarem. Por exemplo, um trauma doloroso no passado proporciona um olhar mais atento para possíveis vítimas de violência no presente, fazendo da pessoa um futuro assistente social, sensível e empático. E isso não é trivial. Os indivíduos não possuem as mesmas lentes para ver o mundo: duas pessoas podem passar pela mesma rua e descreverem-na de forma completamente diferente, uma conta como ela é arborizada e possui casas antigas bem preservadas, enquanto a outra relata que ela é muito escura e com casas velhas e antiquadas. Assim, temos duas possibilidades: aceitar a sombra e fazer sua manutenção constante, valendo-se dela como matéria-prima e ponto de partida para o nosso desenvolvimento pessoal, ou ignorando-a, alimentando-a e sendo, invariavelmente, engolido por ela.

É por isso que não acredito no valor terapêutico das simples afirmações positivas ou na postura exclusivamente otimista de "tratamento" psicológico. Primeiro, porque parte-se do pressuposto de já se ter previamente definido o que é bom e o que é ruim, o que é certo e desejado e o que é errado e precisa ser eliminado, no que naturalmente implica em patologizar certos comportamentos, pensamentos ou sentimentos e submetê-los a um tratamento padronizado, protocolado, testado e vendido. Como disse Jung, "O sapato que serve para um, aperta o outro; não existe fórmula da vida que sirva para todos", ou seja, não podemos pressupor que o que é bom para um, ou mesmo para a maioria, possa se tornar regra geral para todos. Segundo, porque, convenhamos, é uma abordagem muito ingênua e superficial para uma psique que é complexa e profunda. Repetir pra si mesmo afirmações como "eu me amo", "sou bem sucedida e ganho muito dinheiro", "eu me basto", etc. e acreditar que isso será suficiente para a mudança é a mesma coisa que embalar e rotular um produto que você ainda não fabricou, apenas tem o frasco vazio. Agora, se a expectativa for de, com a repetição, convencer-se da necessidade de comprometer com as mudanças que te levarão concretamente a alcançar seus objetivos, então talvez essa abordagem possa ser útil. É como ter uma lista de compras e, ao entrar no mercado, saber de antemão para onde ir e que produtos pegar.

Algumas vezes algo não pode e nem precisa ser consertado. Deve morrer - e temos todo o direito de sentir a dor correspondente por isso - para então ser enterrado e liberar sua energia para novos crescimentos. A terra absorve esses nutrientes e se prepara, fértil, para as sementes que lançamos a ela. Só esperar com muito otimismo e confiança que o ciclo natural se reverta não fará com que isso aconteça. A natureza tem suas regras, de modo que, sem sementes, nada brota também. Nosso papel (o papel do Ego) é a semeadura, o cuidado com os brotos e a manutenção constante das plantas, até que gerem flores e frutos. Outros complexos podem germinar espontaneamente e aí entra a análise, em se conhecer profundamente e se relacionar com esses complexos de forma mais consciente. Antes de cortar e exterminar aquilo que desconheço (e, por consequência, temo), eu deveria analisar com cuidado o que é aquilo, por que brota de dentro de mim (e, portanto, me pertence) e o que pode se tornar se eu permitir que cresça. A erva daninha de um, pode muito bem ser a erva medicinal para o outro. Mas, é claro, se você quiser pular as etapas, até pode comprar belas flores artificiais, muito refinadas, de excelente material, mas não poderá reclamar do fato de que elas nunca darão frutos e muito menos novas sementes...


Hudson de Pádua Lima

Psicólogo 06/165910

São Carlos (SP)

 
 
 

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2025 por Psicólogo Hudson P. Lima.

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