Ser ou não ser (normal), eis a questão
- Hudson de Pádua Lima
- 27 de out. de 2021
- 4 min de leitura
X-Men, hoje uma franquia multiplaforma, é originalmente uma criação de Stan Lee e Jack Kirby para os quadrinhos, cuja estreia aconteceu nos EUA em 1936. Os X-Men são mutantes, humanos que nasceram com habilidades especiais em decorrência de uma mutação genética. Às vezes considerados o novo degrau da evolução humana, na maior parte do tempo são temidos e hostilizados pela humanidade, temerosa de seus poderes e das diferenças que não compreendem.

Os mutantes podem ser entendidos como uma metáfora para minorias sociais de todo tipo: políticas, étnicas, religiosas, sexuais, etc, mas também aludem à experiências e dificuldades humanas universalmente compartilhadas, como a busca por uma identidade, as atribulações na construção da personalidade e o anseio por ajustamento social.
Nesse contexto, trago um excerto de “A Prática da Psicoterapia” (1954/2011) de Carl Jung:
“Ser “normal” é a meta ideal para os fracassados e todos os que ainda se encontram abaixo do nível geral de ajustamento. Mas para as pessoas cuja capacidade é bem superior à do homem médio, pessoas que nunca tiveram dificuldade em alcançar sucessos e cujas realizações sempre foram mais do que satisfatórias, para estas, a ideia ou a obrigação moral de não ser mais do que normal, significa o próprio leito de Procusto, isto é, o tédio mortal, insuportável, um inferno estéril, sem esperança.”

A Psicologia de Jung tem como pilar basal a ideia da individuação: todo indivíduo tem um desenvolvimento único pelo qual busca tornar-se cada vez mais si mesmo, sendo esta realização o principal objetivo de uma vida. Por isso, uma pessoa que almejasse apenas a normalidade, a tipicidade esperada para um ser humano médio de dada sociedade, estaria indo na contramão de um impulso psicológico intrínseco à sua natureza, que a levaria à neurose, o adoecimento mental.
Mas Jung não é tão radical. Ele entendia que a primeira metade da vida deve mesmo prestar-se ao desenvolvimento da personalidade exterior e ao ajustamento social, buscando integrar-se de forma saudável e atuante no coletivo, já que toda nossa vida civilizada é fundamentada na convivência e interdependência comunitária. O empreendimento particular na vida interior e no desabrochar das idiossincrasias da alma poderia esperar até a meia idade, quando esperar-se-ia que o indivíduo já estivesse estabilizado e pudesse voltar sua atenção para si e para dentro.
A nível prático é fácil perceber que a dedicação plena à individuação é um privilégio, do qual, infelizmente, nem todos podem gozar. A grande maioria da população ainda sofre com questões muito mais básicas decorrentes da desigualdade social e de problemas estruturais complexos resultado de toda uma história global de abusos, violências e desequilíbrios. Portanto, seria injusto esperar o mesmo desenvolvimento psicológico de todos os indivíduos e condenar aqueles que almejam o mínimo de uma vida suficientemente confortável e “normal”.

Em meu exemplo com os X-Men, é perguntado à Ororo Munroe, a Tempestade, se alguma vez na vida ela já desejou ser normal e ela responde negativamente, convicta. Apesar de sua infância difícil, órfã e criada como ladra, Ororo tinha descendência real, na África foi venerada como uma rainha e deusa e entre os X-Men é uma mutante de nível Ômega (o patamar mais alto de poder), muitas vezes assumindo a liderança da equipe. Essa trajetória lhe tornou possível consolidar um forte senso de identidade e propósito, justificando sua convicção em nunca ter desejado ser normal. Mas, se a mesma pergunta fosse feita a um dos Morlocks (os mutantes estigmatizados por suas mutações físicas, excluídos tanto da comunidade humana quanto da mutante devido a sua aparência), provavelmente muitos deles diriam que o seu maior sonho seria a normalidade. Mesmo a Vampira, com uma aparência comum e acolhida entre os X-Men, muitas vezes desejou não ter seus poderes, pois estes a impedem de ter qualquer contato físico e a condenam a um isolamento social forçado.
Trazendo a questão de volta à nossa realidade, podemos chegar a algumas conclusões. Primeiro, a normalidade está sempre condicionada a algum pressuposto arbitrário, geralmente estatístico, daquilo que é comum e esperado num dado contexto. Portanto, não existe um conceito universal do que é ou não normal, apenas a observação do que é típico (o que, por si só, não é garantia nenhuma de excelência e muitas vezes está longe de ser o ideal). Segundo, infelizmente, a individuação não é para todos. A psicoterapia deve ser sim cada vez mais difundida e acessível, mas os propósitos à que se prestará devem se ajustar à realidade de cada grupo ou indivíduo. Muitas vezes a pessoa adoecida precisa apenas de acolhimento, de escuta, compreensão e até mesmo algum direcionamento (indo contra a várias escolas de pensamento clínico que defendem uma absoluta neutralidade e imparcialidade do terapeuta) para que encontre uma vida minimamente digna, direito humano universal e inalienável.
Por último, encerro com dois ensinamentos de Jung: “O sapato que se ajusta a um homem aperta o outro; não há nada para a vida que funcione em todos os casos. Cada um de nós carrega sua própria forma de vida - uma forma indeterminável que não pode ser substituída por nenhuma outra.” (Modern Man in Search of a Soul, 1933/2014) e por isso mesmo, há de se ter parcimônia ao julgar o outro, pois “todo julgamento de um homem é limitado pelo seu tipo de personalidade e que toda maneira de ver é relativa.” (Memórias, Sonhos e Reflexões, 1961/2016). Hudson de Pádua Lima
Psicólogo
CRP 06/165910
Bibliografia
Jung, C. G. (2016). Memórias, sonhos, reflexões. Nova Fronteira.
Jung, C. G. (2014). Modern man in search of a soul. Routledge.
Jung, C. G. (2011). A prática da psicoterapia. Editora Vozes Limitada.
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