Somos todos complexados - entenda por quê
- Hudson de Pádua Lima
- 12 de mar. de 2021
- 6 min de leitura
"Fulana tem complexo de inferioridade", "sicrano é complexado", "beltrano tem complexo de heroi"... Provavelmente você já ouviu algumas dessas expressões e talvez até já as tenha usado no dia-a-dia para se referir a alguém que tem problemas em uma certa área da vida ou no modo de se relacionar com os outros. Mas é bem possível que você não saiba a que de fato se refere esse termo - complexo - na psicologia, de onde ele provém e que, desde que caiu no senso comum, acabou tendo seu significado distorcido ou adaptado.

Complexo é um termo encontrado tanto na Psicanálise de Sigmund Freud quanto na Psicologia Analítica de Carl Jung, tendo se expandido e difundido graças ao último, principalmente. Para Freud, complexo era um conjunto de ideias ao qual se fixa a energia psíquica. Jung amplia o conceito, entendendo complexo como qualquer padrão de emoções, memórias, percepções e desejos inconscientes que se agrupam em torno de um tema comum.
O tão falado complexo de inferioridade, dessa forma, seria um conjunto de afetos, pensamentos, crenças e lembranças experimentados no decorrer da vida de uma pessoa, sempre que se sentisse inferiorizada ou humilhada, reunidos pela associação de significado semelhante e que afundariam no inconsciente, por serem intragáveis para a consciência. O problema é que a energia envolvida nesse complexo pode ser despertada novamente sempre que houver algum componente em comum, de acordo com a percepção do indivíduo, entre a situação atual e um evento passado, de modo que ele reage de forma "complexada". Ou seja, ele reage de maneira desproporcional, muito emocionada e/ou com uma visão distorcida dos fatos, pois em sua experiência subjetiva, ele está na verdade reagindo ao mesmo tempo a todos os outros momentos em que se sentiu inferior.
Entretanto, não existem apenas complexos "negativos" ou disfuncionais e a realidade é que a psique de todos nós é povoada por múltiplos complexos, de naturezas diversas. Um complexo se origina como forma de organizar a experiência psíquica no mundo e surge sempre que o ambiente (interno ou externo) traz uma nova demanda ao sujeito, que precisa reagir e se adaptar aos estímulos apresentados. Assim, por exemplo, os primeiros complexos formados em todos nós são os complexos parentais (paterno e materno), originados a partir de nossas primeiras experiências afetivas no contato com nossos progenitores ou cuidadores. Começamos a entender, ainda enquanto bebês, o que sou eu e o que é o outro, de modo que a partir dos complexos parentais se diferencia o nosso complexo do Eu (ou Ego), o núcleo psíquico que reúne toda a nossa noção de identidade e individualidade.
Poderíamos dizer que os complexos são as unidades básicas da psique, sendo que as mais importantes recebem nomes especiais, como o já mencionado Ego, a Sombra, o Animus, a Anima, o Self, Persona, etc, além de uma infinidade de complexos pessoais que, embora possam ser compartilhados na experiência humana, são sentidos e vivenciados de forma única por cada indivíduo. Enquanto os complexos povoam o inconsciente pessoal, os arquétipos povoam o inconsciente coletivo e constituem o material original a partir do qual surgem os complexos. Assim, toda a herança coletiva da humanidade em relação à maternidade está organizada em torno do arquétipo materno, o qual forma a base para o surgimento do complexo materno em cada um de nós (mesmo que nunca sejamos mãe ou não tenhamos tido contato com a mãe biológica, provavelmente houve uma relação próxima de cuidado e nutrição).
Mas quais as implicações práticas e a importância clínica dessa teoria? Pois bem, vamos lá. No exemplo do complexo de inferioridade que eu dei acima fica implícita uma característica muito importante dos complexos, que é sua autonomia. Quando alguém reage de maneira "complexada", a pessoa é, na verdade, tomada pelo complexo. Sua carga energética e conteúdo emergem à consciência e se impõem através de comportamentos estereotipados, isto é, formas de reagir previsíveis e repetitivas, que tendem a ser iguais sempre que o complexo é ativado. Por exemplo, imaginemos uma pessoa com complexo de rejeição. Em uma noite, o seu parceiro nega sexo, dizendo que está cansado e quer dormir. A pessoa se sente indesejada e rejeitada e reage explosivamente com falas como "você não me ama! Eu sou horrível, por isso você não me quer. Ninguém nunca gostou de mim". São declarações genéricas, vagas e emocionalmente muito carregadas, sobre as quais pode-se inferir um acúmulo de energia e que essa é uma reação não só à presente situação, mas a todas as outras já experimentadas por essa pessoa como rejeição. Este complexo também afeta sua autoestima e autoimagem, de modo que, uma vez ativado, a pessoa tem uma percepção dos fatos distorcida e enxerga a realidade através desse filtro, além de que, reagindo dessa maneira, é bem provável que seu parceiro de fato a rejeite, aumentando ainda mais a força do complexo.
Essa autonomia dos complexos se deve à sua natureza enquanto psiques parciais ou fragmentadas. É como se nossa psique fosse um conjunto de bolhas de sabão, cada uma tendo seu próprio contorno, tendo a possibilidade de subir à superfície da consciência e estourar, liberando seu conteúdo e depois voltando a se formar e afundar, maior e mais forte. A formação de complexos é um mecanismo muito útil e, a princípio, saudável, que nos permite funcionar bem em vários ambientes e contextos diversos.
Os complexos são responsáveis, por exemplo, por direcionar nossos gostos e afinidades, desde os filmes que gostamos devido à identificação com um tipo de personagem (complexo de heroi => protagonista poderoso e benfeitor) até a profissão que escolhemos (complexo do curador ferido => psicólogo). Porém, o custo disso é justamente a compartimentalização (e, em casos extremos, a fragmentação). A energia psíquica retida num determinado complexo fica inviabilizada de participar de outros processos no desenvolvimento da pessoa e este é interrompido. Em algum momento de nossas vidas sentimos a falta de recursos para lidar com situações novas, entramos em crise, não conseguimos sair dos mesmos ciclos de problemas, os quais parecem nos perseguir não importa para onde vamos. É a hora em que adoecemos. A doença ou seus sintomas nos obrigam a olhar mais detidamente para nós mesmos e nos perguntar o que viemos fazendo de errado até então. E pode não ter tido nada de errado, na verdade. Pode ser apenas que chegou o momento de passar para uma nova fase e acessar novas ferramentas, sendo que, para isso, precisamos da energia criativa presa nos complexos.
Um dos modos mais seguros de liberar essa energia é através da psicoterapia. Ela possibilita, primeiro, reconhecer a existência desses complexos, perceber como às vezes reagimos de maneira inconsciente às situações e esta acaba não sendo a melhor forma de lidar com a questão. Isso tem tudo a ver com o encontro com a Sombra, sobre o qual falei um pouco aqui. Ao tomar consciência de um complexo, ele já perde um pouco da força e adquirimos algum controle, muito embora ainda não estejamos livres da possibilidade de voltar a sermos tomados por ele. Para isso, precisamos assimilar o conteúdo do complexo e integrá-lo ao Eu (no exemplo das bolhas de sabão, é quando duas bolhas se fundem em uma maior). Esse é o segundo passo possível de ser tomado na terapia e que na verdade é um processo contínuo. Na prática, reconhecemos os complexos naquelas vozinhas interiores que estão constantemente palpitando sobre a nossa vida. Também os identificamos nos sonhos, personificados em figuras conhecidas ou não e que na verdade são símbolos. Através dos símbolos é que podemos propiciar integração, mediando a relação entre consciente e inconsciente e abrindo mão das defesas e do controle.
A situação em que conseguiríamos integrar todos os complexos é utópica, virtualmente impossível de alcançar. Mas é precisamente o empreendimento que importa, o comprometimento com esse caminho que, na Psicologia Analítica, é chamado de individuação. Significa tornarmo-nos quem realmente somos, expressando a essência mais verdadeira de nossa personalidade. Os benefícios são sentidos desde o início, com mais criatividade, mais flexibilidade, mais tolerância com as diferenças dos outros, mais saúde física e mental, melhor qualidade de vida, mais satisfação e prazer. Esse é o verdadeiro objetivo da psicoterapia junguiana: aventurar-se por essa jornada pessoal única junto a um guia, que pode facilitar a caminhada, alertar para alguns dos perigos ocultos, indicar trilhas mais seguras e fornecer apoio nos momentos de maior dificuldade.
Hudson de Pádua Lima Psicólogo CRP 06/165910
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